O “Parlamexit” ou tapar o Sol com uma peneira

De nada serve cantar hossanas à "democracia europeia" para, depois, acabarmos nisto.

Será muito triste e desanimador se for verdade a notícia de o presidente da Comissão Europeia ter pedido desculpa por escrito ao presidente do Parlamento Europeu pelas vigorosas críticas que vociferou, em directo e ao vivo, contra uma sala vazia do plenário de Estrasburgo num debate importante e de alto valor simbólico. Será sinal de o porta-voz da guardiã dos Tratados ter sido vergado pelo “sistema”, coagido a transigir com uma vergonha. Mais triste será se isso se deveu a pressões iradas dos “representantes dos cidadãos”, incluindo os eurodeputados portugueses. Logo no dia do incidente, o que de mais preocupante transpareceu das reacções destes foi a forma como se desviaram do essencial e ignoraram por inteiro o importante.

Jean-Claude Juncker criticou, em voz alta, com invulgar aspereza, mas inquestionável verdade, o facto de só estarem 30 eurodeputados (de um total de 751) para o debate com o primeiro-ministro maltês, Joseph Muscat, no balanço do semestre da presidência europeia de Malta, concluído a 30 de Junho. Era um momento da maior relevância na vida institucional da União, assinalando uma das marcas institucionais mais características — a rotatividade entre todos — e um dos bens mais preciosos do modelo fundador — a igualdade estatutária dos Estados-membros. Era também o debate mais importante do dia, um dos raros de maior relevo interinstitucional: cada presidência rotativa europeia gera dois debates — um no arranque, outro no final, ou seja, quatro debates por ano.

A linha de defesa dos eurodeputados não foi boa. Não estava certa. E foi disparate contra-atacar Juncker por ter cedido ao “populismo”, um discurso estafado e, aqui, sem ponta de razão. Avalio com base no que ouvi à generalidade dos eurodeputados portugueses, presumindo que o tom fosse comum nos eurodeputados de outros países “apanhados” em falta: um discurso defensivo e autocentrado, mas pouco preocupado com a Europa, que foi a questão que Juncker suscitou.

A questão não é por que não estava o deputado A, B ou C — não se trata de justificações individuais. A questão não é onde andavam dez deputados, ou 100 deputados, ou até 200 deputados, a faltar ou ocupados noutros afazeres. A questão é o que se passa no Parlamento Europeu para falharem 720 deputados (!!!) no balanço de uma presidência semestral, a maltesa, isto é, no marco da rotatividade, outrora marco emblemático das Comunidades, hoje União Europeia. Esse é que é o problema.

A experiência como deputado fez-me perceber como o Parlamento Europeu é diferente dos parlamentos nacionais. Tem coisas melhores; e outras piores. Uma das características era o de ser aquilo que exprimi assim: “Não é bem um Parlamento — é uma estação de comboio onde se faz política.” O Parlamento Europeu é uma instituição onde estão sempre a acontecer dezenas de coisas ao mesmo tempo; onde os deputados se cruzam diversas vezes ao longo do dia, em salas, corredores, anfiteatros, exposições, audições, cafetarias, gabinetes, átrios, galerias; onde é completamente impossível acompanhar tudo o que lá se passa. Há vários factores e razões que contribuem para isso: umas boas e necessárias, outras nem por isso. O “tarefismo” não é necessariamente coisa boa, sobretudo quando causa dano à instituição e à sua função principal. E, por isso, é preciso vigiar contra o excesso e a derrapagem.

Um dos excessos mais negativos é um que constatei e procurei contrariar e combater: se um deputado europeu, mesmo dos que trabalham muito — claramente a maioria —, disser que está sempre a par de mais de 10% a 20% do que lá se passa, está a mentir. Não é possível. Não é de todo possível. Os mecanismos de trabalho do Parlamento Europeu dependem, por isso, demasiado da estrutura dos grupos e secretariados, o que se traduz em muitas vulnerabilidades e desigualdades. A capacidade de comando e influência de cada deputado é muito limitada, devido ao volume de coisas que acontecem e ao excesso de matérias sobre que se vota. Os deputados de países pequenos e de grupos pequenos estão em acentuada desvantagem para o seguimento capaz da agenda parlamentar.

Outro dos efeitos negativos é este descalabro que aconteceu diante dos olhos de Juncker: apenas 4% dos deputados estarem presentes numa sessão plenária de muito alta importância! Repito: apenas 4% dos deputados. Por aquilo que a imprensa divulgou da agenda dos deputados portugueses à mesma hora, concluo que as regras, que já estavam mal, pioraram ainda nos últimos oito anos. Até 2009, não era possível haver tantas e tão variadas reuniões simultâneas com um debate prioritário.

É disto que o Parlamento Europeu tem de cuidar: são os parlamentares e não Juncker que fazem as regras por que funcionam. A questão é política e não disciplinar. Repito: não foram cinco, nem dez, nem 50, nem 100, nem 250 deputados que faltaram. Foram 720 em 750 deputados que viraram costas a um momento forte e simbólico do "unidos na diversidade". Por isso, Juncker usou as palavras certas: chamou "ridículo" ao Parlamento, não chamou "ridículos" aos deputados.

Percebeu-se na dureza do presidente da Comissão Europeia a indignação de quem foi primeiro-ministro de um pequeno país e não se esqueceu da sua condição — o Luxemburgo foi, de 1958 a 2004, o mais pequeno Estado-membro. Nós também teríamos gostado de que o presidente português da Comissão Europeia nunca se tivesse esquecido da visão europeia de um país médio, periférico, atlântico, e não negligenciasse nem as aspirações de paridade europeia por todos nem o bom nome e a independência do cargo e do título, acabando na Goldman Sachs e no Clube de Bildeberg.

Juncker esteve bem em tudo o que disse. Disse rigorosamente a verdade, quando não escondeu nem recuou na fúria justa ao apontar que, se fossem Merkel ou Macron a lá estar, em vez de Muscat, o plenário estaria cheio. Sejamos sérios e francos: nenhum de nós tem dúvidas de que seria assim. E esse é que é o problema. 

De nada serve cantar hossanas à "democracia europeia" para, depois, acabarmos nisto. É fantasia exaltar a igualdade dos Estados-membros para chegar a estes extremos de caricatura. Que estamos a fazer da União Europeia? O que está o Parlamento Europeu a fazer da Europa? O que quer de si o Parlamento Europeu? Apenas o palco dos "grandes"?

É inútil o gargarejo ritual contra Nigel Farage, Marine Le Pen ou outros. Este funcionamento deslizante em plano inclinado para o erro é que faz dano à imagem e à substância da Europa. A unidade e a coesão europeias fazem-se do somatório de várias pequenas coisas, entre as quais sala cheia quando roda, a entrar ou a sair, a presidência europeia por um pequeno país, igual aos outros.

No princípio do milénio, a União Europeia guinou no sentido errado e traiu escandalosamente o mandato da Declaração de Laeken. A desvalorização da presidência rotativa do Conselho começou nas mercearias do Tratado de Nice. E prosseguiu quer no Tratado Constitucional (frustrado), quer no Tratado de Lisboa, em vigor. Laeken tinha encomendado bem: “No interior da União, há que aproximar as instituições europeias do cidadão.” Mas fez-se exactamente ao contrário, atropelando um dos traços mais populares das instituições: a rotação semestral da presidência de corpo inteiro entre todos os Estados-membros e a realização regular das Cimeiras Europeias em cidades diferentes de todo o território. Teria havido “Brexit” se as presidências rotativas tivessem continuado tal qual? E se tivessem melhorado, em vez de asfixiadas e mortas? Creio que não.

Estamos a fazer uma Europa mais centralizada, mais politicamente desigual, mais palco de acção exclusiva dos grandes e poderosos do centro continental. Estamos a fazer uma Europa apenas para os “suspeitos do costume”. Ou seja, estamos a dar cabo da Europa. Estamos a desfazê-la, a diluí-la, a deslaçá-la.

Estamos a fazer a Europa que é bem ilustrada neste simbólico “Parlamexit” de 720 eurodeputados ausentes: os “pequenos” já nem têm interesse para outros “pequenos” como eles. Estamos a fazer uma Europa onde se perde o sentido de pares.

É isso que é importante ver, discutir e corrigir, porque, na sua brutalidade espontânea e justa, foi disso que o Presidente da Comissão Europeia falou — e falou muito bem. Quem tem de pedir desculpa é Tajani a Juncker, não Juncker a Tajani.

Antigo líder do CDS; deputado europeu entre 1999 e 2009

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