A austeridade bondosa do PS e os pobres

O discurso político de que hoje os portugueses vivem melhor não é sério nem verdadeiro.

A construção social da realidade é um processo complexo. Há uma análise objectiva, outra subjectiva e depois existe a evidência empírica, que a sociologia do conhecimento considera como tudo aquilo que existe, independentemente da nossa vontade.

Este parágrafo ajuda-nos a enquadrar a seguinte questão: será que a vida das pessoas pobres está a melhorar? A economia está a crescer, o défice está a ser cumprido, o país saiu do procedimento por défice excessivo, as exportações registaram um aumento robusto, a taxa de desemprego está em valores inferiores a 10%, o emprego cresce 3%, os bancos foram recapitalizados.

Estes indicadores são interpretados como um sinal de grande sucesso governativo. O ministro Mário Centeno afirmou recentemente que “vamos viver num espaço económico e financeiro que nos permite fazer o que não podíamos fazer até agora”. Será que isto significa mais dinheiro e recursos para melhorar o funcionamento das instituições públicas ou será que vamos continuar a recorrer aos serviços da Loja do Cidadão no Porto e esperar cinco horas no balcão da Segurança Social para sermos atendidos? Vamos finalmente ter dinheiro para instalar como prioridade de saúde pública uma sala de injecção assistida para as centenas de toxicodependentes moribundos desta cidade? Vamos, com esta folga orçamental, reforçar a verba miserável que a segurança social transfere para a Rede Local de Intervenção Social (RLIS) na Rua do Heroísmo?

A RLIS — que acompanha, através de um protocolo de cooperação com a segurança social, os pobres das freguesias do Bonfim e de Campanhã — dispõe de três mil euros por mês para salvar da miséria mais de 400 famílias. É verdade, é ridículo e é vergonhoso. Inaceitável. O PS transfere para as instituições privadas a responsabilidade social de protecção e acompanhamento destas famílias e depois estrangula o seu funcionamento por insuficiência de verbas e meios que são provenientes de fundos comunitários. Vamos com este sucesso governativo continuar a ter carreiras congeladas na função pública, precários a trabalhar no Estado e no privado, milhares de famílias à espera de um alojamento digno do IHRU (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana) que, neste momento, nem às vítimas de violência doméstica consegue dar um tecto? Este sucesso governativo tem tocado positivamente a vida de quem? Dos que recebem um salário mínimo miserável? De mães separadas, com dois filhos menores, a viver num bairro social e a receber 321,68 euros de RSI? Esta onda de optimismo, de confiança, de aumento da credibilidade do país no exterior e de boa reputação de Portugal junto dos mercados vai permitir construir equipamentos sociais para as pessoas portadoras de deficiência e de doença mental? Vai possibilitar investir no alojamento digno e adequado para retirar as pessoas que vivem na rua? Claro que não.

O PS vai continuar a fingir que governa à esquerda. Mas, ao mesmo tempo, diz nas suas jornadas parlamentares que quer manter a sua identidade ideológica, ou seja, continuar alinhado com o actual projecto europeu que nos asfixia com o pagamento da dívida. Esta matriz ideológica do PS sempre foi assim. Desde o tempo de Mário Soares que o crescimento económico e a criação de mais emprego nunca se traduziu em maior justiça social. Cumprir as responsabilidades e os compromissos com a Europa e fazer disso uma prioridade política com direito a receber um telefonema de felicitação do senhor Presidente da República vai, mais uma vez, ser sinónimo de apoios mínimos para os que mais precisam.

O investimento público para gerar bem-estar social e elevar a qualidade de vida dos que mais sofreram com as políticas de austeridade é hoje considerado um procedimento pouco responsável. O discurso oficial, institucionalizado, legitimado pelos meios de comunicação social, sublinha que agora que saímos do procedimento por défice excessivo só temos de ser prudentes, cautelosos nas despesas, não gastar de forma leviana. Acudir a quem mais precisa estraga as metas, as percentagens, os resultados do bom aluno Portugal que se quer portar bem lá fora desrespeitando os que mais sofrem cá dentro.

Isto é grave por várias razões. Porque interioriza nas pessoas a ideia de que é possível fazer uma política alternativa à austeridade com bons resultados valorizando o Estado social e os compromissos europeus. Ora, eu, que estou no terreno com os pobres todos os dias, afirmo categoricamente que isto não é verdade. Depois, porque ficamos com a ideia de que não há outra alternativa. Ou temos isto ou o regresso do diabo. Lembram-se deste filme?

Existem alternativas políticas para melhorar a vida da esmagadora maioria das pessoas que estão a pagar a crise. Quais? Taxar as grandes fortunas, combater a fuga e a evasão fiscal, acabar com as parcerias público-privadas, renegociar a dívida, apoiar as pequenas e médias empresas, acabar com as despesas supérfluas na máquina do Estado, utilizar de forma justa e adequada os fundos comunitários, dignificar o trabalho e quem trabalha. Por fim, é grave esta política de mentira, fingimento e maquilhagem acrobática, porque continua, no essencial, a não combater de forma séria e consistente o elevado nível de desemprego, a fragilidade e a precariedade laboral, a falta de investimento público para combater as desigualdades sociais.

Apesar de todo o entusiasmo recente, a maioria do tecido empresarial português não tem escala de produtividade e vive na agonia dos impostos. A máquina do Estado é ineficiente e gasta mais do que recebe. O discurso político de que hoje os portugueses vivem melhor não é sério nem verdadeiro. Os pobres continuam no desespero da subsistência. A campanha solidária do passado mês de Maio do Banco Alimentar Contra a Fome confirma isso. Há cada vez mais pedidos de ajuda. São pessoas, têm direitos e dignidade. Merecem realizar os seus sonhos. Merecem ser tratados como seres vivos que querem ter presente e futuro. De uma vez por todas, os cidadãos têm de ser a prioridade de quem governa.

 

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