Os murmúrios dos nossos fantasmas

Romance em tom ensaístico sobre o tempo e a vida.

Foto

A par de Olivier Rolin, Philippe Claudel (n. 1962) é, muito provavelmente, o autor contemporâneo francês mais traduzido e publicado em Portugal nas últimas duas décadas, com cerca de uma dezena de títulos, entre eles O Relatório de Brodeck (ASA, 2009), A Neta do Senhor Linh (ASA, 2010), e A Investigação (Sextante, 2012). Este último (talvez o mais interessante da sua obra) é uma fábula com traços claramente kafkianos, sobre a violência absurda que o trabalho pode exercer sobre o indivíduo, anulando-o como ser singular e transformando-o numa “função”, aquela que ele exerce na cadeia de produção. Refiro-o porque, de certa forma, tem alguns pontos em comum (como adiante se verá) com o que acaba de ser por cá publicado, A Árvore dos Toraja.

Na ilha de Sulawesi, na Indonésia, vive o povo Toraja. O narrador, um cineasta (Philippe Claudel é também realizador), atravessou esta região na Primavera de 2012. Foi lá que soube do hábito daquele povo de cultuar uma árvore especial que serve de sepultura às crianças que morrem durante os primeiros meses de vida; a criança é depositada numa cavidade aberta no próprio tronco, e com o passar dos anos a ferida na árvore fecha; começa a pouco e pouco a viagem que faz a criança subir aos céus, “ao ritmo paciente do crescimento da arvore”. Quando o narrador regressa a casa, em França, recebe a notícia de que o seu melhor amigo, Eugène, padece de um cancro. Acabará por morrer menos de um ano depois, acabará por se “retirar do tempo”.

Todo o romance, apesar de irmos seguindo a história da amizade entre os dois homens (o narrador-cineasta e Eugène, seu produtor), recorrendo a sucessivas analepses, tem um tom estranhamente ensaístico. É um livro sobre nós, os vivos ocidentais, os que vivemos ocupados pelos murmúrios dos nossos fantasmas. Sobre nós como resultado de uma complexa tecedura de palavras, de imagens, de sensações, de instantes, de cheiros, de memórias ligadas àquelas e àqueles com quem nos fomos relacionando de uma maneira duradoura ou passageira. E que ao mesmo tempo que esta tecedura se vai urdindo, à nossa volta também se vão apagando outras presenças, também se vai redefinindo uma ordem que o caos da morte teima em perturbar continuamente. Por isso, avisa-nos o narrador, “viver é saber sobreviver e refazer”.

A Árvore dos Toraja é sobretudo uma longa reflexão sobre a morte, que o tom ensaístico do romance sublinha: reflexão sobre o tempo e a vida, os nós e os laços, as recordações feridas que nunca chegam a apaziguar-se nem a apagar-se. O narrador reflecte sobre a nossa condição passageira e sobre a necessidade de integrar a morte nas nossas vidas, no desenrolar dos nossos dias como fazem os Toraja, ao mesmo tempo que ironiza sobre as estratégias que pomos em acção nos nossos corpos “para enganarmos o tempo e os nossos medos”. De uma forma ou de outra, tentamos sempre jogar com o tempo para enganar o fim. “O remorso, o tempo, a morte, a recordação não são mais do que as diferentes máscaras de uma experiência que não tem nome na língua e que poderíamos, muito simplesmente, designar com a expressão uso da vida. Se pensarmos bem, toda a nossa existência cabe na experimentação que fazemos dela. Não paramos de nos reconstruir perante o fluxo do tempo, inventando estratagemas, máquinas, sentimentos, artifícios para tentarmos troçar um pouco dele, traí-lo, renová-lo, estendê-lo ou acelerá-lo, suspendê-lo ou dissolvê-lo como um quadrado de açucar no fundo de uma chávena.”

Se no romance A Informação, Claudel apresentava uma fábula sobre a alienação das nossas vidas na sociedade moderna, inseridos numa espécie de máquina infernal, de lugar abandonado pela lógica, em A Árvore dos Toraja procura mostrar-nos como essa sociedade moderna vive obsecada e ansiosa com a doença e com os cuidados com o corpo, numa tentativa de anular a inexorável marcha do tempo. Em ambos é o medo quem marca o compasso.

Philippe Claudel excede as reflexões com base em dados científicos (sobre a natureza das doenças graves) e aventura-se em questões supostamente ‘filosóficas’ sem aparente resposta. Na ligação entre a doença e o homem, por exemplo, o narrador interroga-se: “Somos sempre e apenas as vítimas de nós próprios, ou os culpados da nossa própria queda?” Não se interroga sobre as causas físicas que favorecem o aparecimento e a progressão de uma doença grave, mas sobretudo as circunstâncias em que ela surge.

Não sendo um romance extraordinário, como outros do autor, este vale por obrigar o leitor a reflectir sobre o ‘estado de ansiedade’ para onde as sociedades industrializadas empurram os seus cidadãos.

Sugerir correcção
Comentar