Nas mãos de Maria Chavez, o som não vai para onde esperamos

Na primeira edição da noite Brave, na ZDB, em Lisboa, a artista e performer vai apresentar a sua prática de turntablism abstracto. Uma “conversa sónica em curso com o público”.

Foto
Maria Chavez Jaime OBradovich

Maria Chavez ouviu o seu primeiro som aos três anos, rodeada de médicos, numa sala em Austin, Texas. O som de um boneco, mais exactamente de uma galinha de corda. “Foi aterrador. Mas ainda bem que estava a chorar, significava que finalmente conseguia ouvir. Como um bebé que chora depois de nascer”, recorda ao PÚBLICO.

Foi um início fora do normal de uma relação com o som que viria a ser, também ela, fora do normal. Performer, artista sonora, curadora e DJ nascida no Peru e residente em Nova Iorque, Maria Chavez é uma das vozes mais distintivas e peculiares da arte do turntablism. Esta sexta-feira, na ZDB, em Lisboa, na primeira edição da noite Brave, programada por Syma Tariq, vai mostrar o que é o turntablism abstracto. Explicação prévia: “É um gira-discos, uma colecção de agulhas, que são como os meus lápis de som, e uma colecção de discos de vinil, partidos e inteiros, que combino para criar ideias de som improvisadas”, descreve Maria Chavez.

Pouco ou nada tem a ver com o hip-hop, território onde o turntablism é prática comum. “Além de manipular os sons gravados nos vinis, exploro as qualidades electroacústicas dos discos em simultâneo com as diferentes fases das agulhas. Incorporo o acaso, as falhas do material. Não uso samples. Não vês isto no turntablism de hip-hop, onde tudo tem de estar no sítio”, acrescenta a artista, que, a par das performances, desenvolve uma sólida carreira académica, através de workshops e palestras – muitas delas baseadas no seu livro Of Technique: Chance Procedures on Turntable –, residências artísticas, colaborações com instituições culturais e universidades – entre outras coisas, é investigadora bolseira da Goldsmiths, em Londres, e tem neste momento uma peça na Documenta, uma das mais importantes mostras de arte contemporânea.

“Isto para mim não é a música, são esculturas de som que existem por um pequeno período de tempo.” Maria Chavez distorce, desconstrói, recria e recontextualiza os tecidos e as fibras do som e das ferramentas que utiliza. É como ouvir o descascar da matéria e da mecânica, com todos os acasos, acidentes e estragos que isso implica. E, a partir daí, gera uma conversa sobre as ideias pré-concebidas que temos em relação ao som, às formas como ele é identificado e padronizado. “É permitir que a deterioração faça parte do processo artístico e questionar porque é que uma pessoa acha que determinado som é bom ou mau. Que ideias é que a sociedade foi passando para se pensar assim”, diz a artista. “É uma conversa sónica em curso com o público.”

Uma conversa que se quer sem hierarquias. “Levo uma colecção de discos que vai variando – têm de ser vinis em que haja espaço dentro do som gravado para eu conseguir puxar uma ideia independente –, mas por vezes as pessoas que me vão ver dão-me discos e sempre que posso toco-os nessa noite. É importante ouvi-los em conjunto com o público, que gosto que esteja bem perto do palco, muitas vezes em cima dele.”

A prática de turntablism de Maria Chavez começou aos 22 anos, quando fez um estágio na fundação de Pauline Oliveros (1932-2016), nome maior da música experimental e pioneira do deep listening. “Isso mudou completamente o modo como abordo o meu dia-a-dia, as minhas performances, os conflitos.” Por exemplo, o modo como gere os episódios de misoginia no trabalho. “No outro dia o curador Alfredo do espaço Spektrum, em Berlim, disse-me que eu não sabia como ligar uma mesa de DJ, apesar de eu ser DJ profissional desde os 16 anos, e que o meu CV não era suficientemente bom para fechar uma noite de espectáculos. Foi mais um homem a tentar afirmar poder. Estava furiosa. No comboio a sair de Berlim conheci uma refugiada síria e, de repente, os meus problemas pareceram tão pequenos… Pensei logo nos métodos de deep listening da Pauline: lutar contra estas coisas, sim, mas saber reconhecer o teu privilégio e não permitir que certos momentos denigram o teu presente.”

E é esse presente que vai ser celebrado na Brave, contra fronteiras e preconceitos de género, etnia e práticas musicais. Esta noite de sexta-feira conta ainda com Bonaventure, a produtora e DJ portuguesa Caroline Lethô e um DJ set de Maria Chavez, depois da sessão de turntablism.

Sugerir correcção
Comentar