Mentiroso? Divulgue os telegramas de Jacarta e Díli para Portugal

Senhor embaixador, prove que estou a mentir. Divulgue os telegramas enviados por Ana Gomes e Pereira Gomes para o MNE.

O embaixador Fernando d’Oliveira Neves chama-me mentiroso pelo artigo que escrevi no PÚBLICO sobre o comportamento em Timor do também embaixador José Júlio Pereira Gomes, recentemente nomeado para secretário-geral do Sistema de Informações da República (SIRP) pelo primeiro-ministro António Costa. Menos bonito, digamos assim, é o senhor embaixador, ao chamar-me mentiroso a mim, estar também a chamá-lo à sua “colega e amiga” Ana Gomes, que confirmou estes factos.

Reclama o senhor embaixador para si a nomeação de José Júlio Pereira Gomes para chefe da missão de observação, negando que, tal como eu escrevi, tal tenha partido de Ana Gomes. Peço desculpa se me enganei, mas deixe que lhe diga uma coisa: escolheu mal. Já se tivesse sido Ana Gomes a ter feito a escolha não precisava de lhe dizer isto, porque tenho a certeza de que estaria profundamente arrependida.

Quanto ao facto de o senhor embaixador me chamar mentiroso por ter afirmado que a missão portuguesa saiu contra a vontade do Governo português, acho curioso. E acho curioso que o faça só 18 anos depois de o PÚBLICO ter colocado em manchete no dia 10 de Setembro de 1999 um texto da minha autoria que dizia o seguinte: “Observadores portugueses saem de Díli contra a vontade de Lisboa.” O que, aliás, foi depois repetido por vários órgãos de comunicação social. Por que só se indigna agora?

Aliás, o único tímido desmentido que me lembro de ouvir foi de José Júlio Pereira Gomes após ter ido ao Palácio de Belém, em 14 de Setembro de 1999. Questionado pelos jornalistas sobre estes factos afirmou: “O Governo português não pede, dá ordens e eu cumpri as ordens para sair.”

O senhor embaixador estava em Lisboa e eu estava em Díli e assisti às fúrias e aos gritos que José Júlio Pereira Gomes soltava sempre que de Portugal lhe diziam que tinha de ficar em Timor. E sabe o que me espanta? É que, havendo par aí duas dezenas de testemunhas que assistiram a tudo isto no local, alguém tenha o desplante de dizer que o meu relato é mentira.

Claro que houve uma ordem para sair, mas a questão não é essa. A questão é porque houve essa ordem, quando essa não era a vontade do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e do primeiro-ministro, que queriam que a missão ficasse em Timor enquanto Ian Martin, chefe da missão da ONU, lá permanecesse. E essa ordem foi dada porque José Júlio Pereira Gomes gritava ao telefone, na frente de todos os que lá estávamos, com quem falava no MNE em Lisboa, que se ficassem iriam todos morrer.

Recordo, aliás, o que o embaixador António Franco, na altura chefe da Casa Civil do então Presidente Jorge Sampaio, relata no volume II da biografia de Sampaio da autoria de José Pedro Castanheira. Página 845: “António Franco e Carlos Gaspar também se ‘mudam’ para Belém. ‘Assisti ao que é o sentido de dever de um Presidente’, testemunha o chefe da Casa Civil. ‘É um caso exemplar de uma grande cooperação institucional ao mais alto nível do Estado: Presidente, primeiro-ministro e ministro dos Estrangeiros. As relações do Jorge com o Guterres e o Gama melhoraram muito nessa altura, trabalharam juntos, noites e noites, e Belém foi o ‘noyau’ da actuação diplomática portuguesa. Guterres teve uma conduta absolutamente diferente da que teve com Macau (onde raramente se meteu). Nunca o vi tão furioso, como quanto a alguns dos nossos observadores diplomáticos no terreno que, cercados pelas milícias juntamente com centenas de timorenses, não cessavam de reclamar por uma pronta evacuação.’”

Quanto à questão dos funcionários timorenses que trabalhavam para a missão portuguesa, mantenho tudo o que disse: houve, de facto, na missão quem se preocupasse com eles, mas não foi nunca José Júlio Pereira Gomes. Só se começou a “preocupar” quando pressionado por Ana Gomes desde Jacarta e quando os jornalistas o começaram a questionar sobre o assunto.

Mas o que realmente me aborrece não é que me chame de mentiroso — ou que João Luís Mota de Campos, um dos membros da missão de observadores, fale numa “acusação injustificada e gratuita”; o que realmente me aborrece é que diga que “logo à chegada a Lisboa Luciano Alvarez e outros dois jornalistas [não foram dois, foram mais três] que o acompanharam foram críticos do comportamento de Pereira Gomes e laudatórios do seu”. Primeiro, não regressei logo a Lisboa. Fiquei em Darwin e poucos dias depois voltei a Timor. Segundo, não viveria bem na minha pele se alguma vez tivesse andado a tecer loas ao meu trabalho face ao que assisti ao longo de muitos meses em Timor, antes e depois do referendo. Sabe, senhor embaixador, houve um único herói em Timor e não foi nenhum jornalista ou embaixador: foi o povo timorense. A esse, sim, teci muitas loas.

Diz ainda que, se bem se recorda, deixei “também Timor no mesmo dia, integrando a evacuação da UNAMET”. É verdade, também parti. Fi-lo porque o responsável da ONU pela evacuação nos disse que os estrangeiros que ficassem ficariam fora da sede da ONU por “sua conta e risco”, o que, como sabe, seria complicado por diversas razões, nomeadamente de ordem técnica para enviar o trabalho para o PÚBLICO. Tivesse a missão portuguesa ficado e eu lá teria ficado também.

Por fim, permita-me um desafio: prove realmente que estou a mentir. Divulgue os telegramas enviados por Ana Gomes de Jacarta e os enviados por Pereira Gomes de Díli para o MNE, desde a chegada da missão até à saída de Timor, para que se fique a saber quem realmente mente. Pode ser que sejam também importantes para o primeiro-ministro na investigação que parece andar a fazer sobre o trabalho de José Júlio Pereira Gomes em Timor.

P.S.: O senhor embaixador José Júlio Pereira Gomes mente mais uma vez quando escreve no artigo de sábado no PÚBLICO que, quando o Governo português tomou a decisão de retirar a missão de Timor, não estava prevista nenhuma visita do Conselho de Segurança a Díli e que tal só foi confirmado quando ele já estava a caminho de Darwin. Há documentos das Nações Unidas e de representantes de Portugal na ONU na altura que provam que não foi assim.

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