Hospital foi uma "ratoeira" para David, que morreu no S. José com um aneurisma

Por que razão foi o doente de 29 anos enviado para uma unidade de saúde onde não podia ser operado senão mais de 48 horas depois? - interroga-se família, que tenciona tentar reabrir processo arquivado pelo Ministério Público.

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Ana Ramalho

Quando David Duarte, o jovem que morreu na sequência da ruptura de um aneurisma cerebral no Hospital de S. José, foi levado de ambulância para esta unidade de saúde em Dezembro de 2015, foi como se tivesse sido encaminhado para uma ratoeira: não havia ninguém para o operar por ser fim-de-semana, mas o agravamento do seu estado de saúde também não permitia, na opinião dos médicos que o assistiram, transferi-lo para outra unidade de saúde com equipa médica disponível.

Infelizmente “tinha escolhido mal o dia para ter um aneurisma”, ouviu a sua namorada da boca de um clínico do S. José na sexta-feira em que David Duarte deu entrada na unidade de saúde de Lisboa, para onde foi enviado pelo Hospital de Santarém. E um dos médicos que lidaram com a situação comentou com um colega que aquele doente “ainda iria dar problemas.”

Mais do que os cuidados de saúde que lhe foram ou não prestados, a transferência para S. José será uma questão central na tentativa que a sua família tenciona fazer para que seja reaberto o processo judicial arquivado recentemente pelo Ministério Público. Por que razão foi David enviado de ambulância naquela tarde para o S. José com um problema de saúde que podia obrigar a uma neurocirurgia quando era há muito sabido que não existiria equipa médica para o operar senão na segunda-feira seguinte? “Mais do que negligência médica houve dolo eventual: os responsáveis da tutela previram o dano que podiam causar mas conformaram-se com isso”, observa a advogada da família, Cristina Malhão, que fala em crime de homicídio e acusa o Ministério Público de não ter investigado o caso a fundo como se impunha, no que à transferência de hospital diz respeito. “Se não tinham meios por que é que o receberam?”, questiona, considerando que  a vítima do aneurisma caiu, de facto, numa “ratoeira”. 

A sustentar a tese da advogada estão duas deliberações da Entidade Reguladora da Saúde, uma das quais é anterior a esta morte e recomenda ao hospital lisboeta que transfira os doentes com ruptura de aneurisma cerebral, como viria a ser o caso de David, para outras unidades com recursos para fazer o tratamento ao fim-de-semana, face à incapacidade da unidade em realizar as cirurgias. A segunda recomendação, que já diz respeito à morte deste doente, observa que aquela unidade de saúde “não só se mostrou incapaz de escalar uma equipa para realizar a cirurgia urgente como também não procedeu a qualquer contacto para possível transferência do utente para outro hospital.” A Ordem dos Médicos concluiu, porém, não ter existido negligência.

Especializada neste tipo de crimes, a procuradora que decidiu arquivar o processo. Emília Serrão ouviu não só todos os clínicos e restante pessoal envolvido no caso como diversos responsáveis hierárquicos das duas unidades de saúde. E todos lhe explicaram o que lhe veio também a dizer um perito do Instituto de Medicina Legal: que as linhas de orientação internacionais para situações do género admitem uma espera de 72 horas até à cirurgia. 

Questionado sobre se se impunha transferir David do S. José para outro hospital, o especialista foi peremptório: “Não, dado que seria operado num intervalo de tempo considerado ainda adequado, num hospital com os meios necessários para o tratamento desta patologia e por a sua transferência poder acarretar riscos de instabilização e agravamento clínico.” O mesmo perito disse que os exames feitos em Santarém revelavam a hemorragia cerebral mas não a sua origem - o aneurisma, que obrigaria a intervenção cirúrgica e só veio a ser diagnosticado em Lisboa. 

No despacho de arquivamento, a procuradora esclarece que aquilo que tentou apurar foram eventuais responsabilidades criminais por parte dos intervenientes médicos. “Não nos compete apurar responsabilidades políticas e civis ou administrativas por parte de dirigentes e administrações regionais ou sectoriais de ministérios, sendo que essas resultam de acto ou omissão no desempenho do cargo e não de acto ilícito, culposo e punível”. Cristina Malhão discorda e recorda o caso dos hemofílicos, em que a então ministra da Saúde Leonor Beleza chegou a ser constituída arguida por causa da morte de pacientes que tinham recebido sangue contaminado com o VIH/Sida. 
Questionado sobre o caso do aneurisma, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, disse esperar que não voltem a ocorrer episódios idênticos. Esta morte fez alterar o modelo de resposta para este tipo de situações, cujo tratamento é agora assegurado aos fins-de-semana de forma rotativa entre quatro hospitais de Lisboa.

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