Elas frescas são

Preferia que as sardinhas fossem muito boas mas não estivessem frescas? Talvez. A saudade tudo deforma.

A impaciência sardinheira agudiza-se em vésperas dos santos. Longas são as rondas de telefonemas à procura delas. Quando se localiza uma dúzia delas festeja-se no caminho, antes da desilusão se instalar.

Quando nos dizem, logo a abrir, "Elas são frescas..." já se adivinha a gigantesca condicionante: "...mas não prestam". Vem logo a lista de defeitos odiados: são magras, são fracas, estão moídas. E depois a justificação sempre irritantemente legítima: ainda não está no tempo delas. E de nós exige-se que respondamos "pois não", paguemos e calemos e, enquanto mastigamos acremente, não nos cansemos de pedir desculpa pelo atrevimento extemporâneo.

Preferia que as sardinhas fossem muito boas mas não estivessem frescas? Talvez. A saudade tudo deforma. A sério? Sardinhas fresquinhas mas horríveis ou magníficas mas podres? É essa a escolha?

Há muitos anos, num Maio igualmente desesperado, mas mais distorcido ainda pelo exílio, andei quilómetros para chegar a uma cabana de peixe assado. "Tem sardinhas?" A resposta, enfurecedora pela graxa gratuita: "Tenho, mas não são para si". "Não interessa, eu quero na mesma, estou cheio de saudades". Ele insiste: "Não estão em condições". Quais condições? Em que condições é que não estão o raio das sardinhas?". "Não são de hoje". "Traga na mesma." "Peça outra coisa". "Não, quero as sardinhas!". "Estão moídas e anchovadas". "Quero meia-dúzia". E, de repente, faz-se luz: "Você não tem sardinhas, pois não?" "Não". E por fim, pateticamente: "nenhumas?"

Sugerir correcção
Ler 2 comentários