O vídeo do Correio da Manhã

O Correio da Manhã é também um jornal com um historial importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da corrupção.

A divulgação pelo Correio da Manhã de um vídeo de cariz sexual gravado num autocarro do Porto durante a Queima das Fitas provocou indignação generalizada. No entanto, a reflexão sobre aquilo que realmente se passou no autocarro ficou para segundo plano – a grande discussão centrou-se no aproveitamento sensacionalista daquelas imagens por parte do Correio da Manhã. Diogo Queiroz de Andrade, director-adjunto do PÚBLICO, escreveu a esse propósito um texto intitulado “Aquilo não é jornalismo”, que vale a pena discutir aqui.

Queiroz de Andrade começou por fazer duas coisas bem feitas. Em primeiro lugar, teve o atrevimento de escrutinar outro órgão de comunicação social, uma prática que merece ser sempre incentivada. O jornalismo é uma actividade muito corporativa, e frequentemente os jornalistas são demasiados complacentes na vigilância da sua própria profissão. Ora, nenhum jornalista, nem nenhum meio de comunicação social, é 100% isento e 100% independente – há sempre preferências, dependências, interesses, amizades, cumplicidades –, e por isso, numa sociedade saudável e numa democracia madura, é essencial que os meios de comunicação social se vigiem e critiquem mutuamente.

A segunda coisa bem feita tem a ver com as críticas apontadas à publicação do vídeo. Ao contrário de quase toda a gente, que concluiu de imediato que havia ali um caso evidente de abuso sexual, eu não concluí grande coisa. Aliás, tendo em conta que aquela cena lamentável se passou num espaço público, numa Queima das Fitas, e que envolveu uma jovem que, pelos vistos, é maior de idade, eu até posso compreender, em abstracto, o valor noticioso do acontecimento e a utilização de partes do vídeo devidamente editadas – só que nunca, mas nunca, da forma como foi publicado pelo jornal. A razão é fácil de compreender: neste caso, o Correio da Manhã não fez jornalismo. Havia vídeo mas não havia história. As imagens foram lançadas sem qualquer contextualização significativa (foi o Expresso que adiantou mais tarde que a jovem seria maior, que estava identificada pelas autoridades, e que não quis apresentar queixa pelo alegado crime – semipúblico – de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência) e com as identidades mal protegidas. Por isso, o jornal foi justamente acusado de amplificar de forma sensacionalista um vídeo divulgado no Facebook.

Contudo, há um momento em que Diogo Queiroz de Andrade vai longe demais – ele transforma uma crítica justa a um caso específico numa extrapolação abusiva em relação a todo o jornal. É quando escreve: “Nada disto faz [do Correio da Manhã] um produto jornalístico – nem sequer o facto de às vezes trazer notícias.” Ora, este é um argumento tanto mais perigoso quanto ele tende a generalizar-se, por razões mais políticas do que mediáticas. O Correio da Manhã é um jornal popular desde o seu nascimento, feito para um público que descobre nele muita informação que não encontra noutro lado. É um tablóide que valoriza casos de violência e de sexo, e que não tem pudor em escrever notícias sobre a vida privada de figuras públicas. Comete com frequência grandes erros – que devem ser criticados e julgados. Mas – e este é um grande “mas” – é também um jornal com um historial importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da corrupção. Ponto 1: isto não pode ser desvalorizado. Ponto 2: muito do ódio que hoje em dia se sente em relação ao Correio da Manhã advém precisamente daí.

Sugerir correcção
Ler 62 comentários