Varrer o passado para debaixo do tapete — ou será o património arqueológico um problema?

Em vez de cuidarmos do nosso legado, o que fazemos? Tape-se com geotêxtil e camadas de areia. Assim não incomoda ninguém.

Portugal é definitivamente um país estranho. Vivemos num território que alberga uma milenar herança de várias épocas, povos e civilizações. Estas condições poderiam fazer de nós um caso de referência internacional, mas continuamos a ser incapazes de estudar, valorizar, mostrar e orgulharmo-nos do nosso património herdado e de transmiti-lo às gerações futuras. Um país que agora é visitado por milhares de turistas, mas que continua a ter as suas memórias fechadas, abandonadas, arruinadas ou (como recentemente sucedeu com um elemento pertencente a um conjunto classificado como Património da Humanidade) vandalizadas de forma sorrateira e ignóbil.

Vem esta reflexão a propósito de um caso noticiado recentemente em alguma imprensa local, e alvo de um artigo de opinião publicado no jornal PÚBLICO (“O Parque Verde de Alcobaça e o problema arqueológico”, de 08.05.2017). Um caso que, embora centrado numa realidade específica, mostra-nos como no nosso país continuamos a sacrificar o passado à custa do imediatismo presente.

O município de Alcobaça encontra-se a realizar obras com vista à criação de um Parque Verde, situação que é obviamente digna dos maiores elogios, e que como tal deverá ser considerada. Contudo, no decurso de terraplanagens dos terrenos, terá sido posto à vista o alicerce de uma estrutura monumental, que tem sido interpretada como pertencente a um mausoléu de época tardo-romana, embora se registem duas fases de construção e o achado de tesselas pertencentes a pavimentos de mosaico (ou seja, poderá ser ainda mais relevante do que inicialmente foi proposto). Seja qual for a funcionalidade original, que aqui não compete discutir, o achado de uma estrutura de tão grandes dimensões seria, por si só, digna de se realizarem escavações para se perceber a que corresponde e, confirmando-se as expectativas de corresponder a algo de insuspeitado interesse, que se promovesse a sua integração e valorização dentro do plano de obra.

Ou seja, não está em causa a continuação da obra; apenas que esta contemplasse a integração de tão relevante estrutura arqueológica. Afinal, estamos a falar de um parque verde, um espaço de passeio, fruição e lazer, onde a integração de um elemento do património arqueológico poderia funcionar como uma mais-valia do ponto de vista cultural, turístico e pedagógico (sem mencionar o facto de as escavações arqueológicas poderem trazer à luz do dia ainda mais estruturas ou artefactos que acresçam valor ao que já foi identificado).

Não estamos perante a “clássica” situação na qual uma estrada ou uma construção implica o sacrificar do património arqueológico; estamos perante a criação de um espaço-natureza onde uma estrutura milenar poderia ser perfeitamente enquadrada, podendo ser um valor de interesse turístico por si só ou combinada com os valores paisagísticos.

Contudo, para não atrasar a obra em ano de eleições, o que propõe a autarquia, com o beneplácito da instituição de tutela competente? Que se proceda à cobertura do que foi descoberto com geotêxtil e camadas de areia, ficando a estrutura oculta, até que um dia a autarquia entenda promover futuras escavações (ou seja, depois de tapar, que a destapem... duplicando assim esforços e dinheiros do erário público).

O turismo cultural é a indústria da economia mundial com maior taxa de crescimento anual: 8% em 2016. Portugal vive um momento único na capacidade de atrair turistas que pretendem desfrutar das nossas paisagens, praias, gastronomia, mas também das tradições e do nosso património. E em vez de cuidarmos do nosso legado, de o protegermos, valorizarmos e disponibilizarmos à fruição pública, o que fazemos? Tape-se com geotêxtil e camadas de areia. Assim não incomoda ninguém. 

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