Conhecer Giosefine por artes de Mísia

Mísia agarra a audiência no que é, como ela própria o descreveu, “um duplo salto mortal entre géneros”.

Não é um disco, nem um fado. É uma peça de teatro, que Portugal viu agora pela primeira vez depois da sua estreia em Buenos Aires, na Argentina. Mas no centro dela está Mísia e isso pode levar a esta exclamação: uma cantora a encarnar um monólogo teatral? Pois antes de contar a história desta aventura, leia-se o que escreveu o crítico de teatro Antonio Hernández Nieto na edição espanhola do Huffington Post, após ter assistido ao primeiro espectáculo no Teatro Regio, registando a metamorfose operada no público: “Um público que entrou descrente (“dizem que é protagonizado por uma cantora”, ouvia-se no hall e entre a plateia), no qual o espectáculo foi criando empatia e interesse pelo que se passava em cena, que se entusiasmou quando Mísia se pôs a cantar e que, vendo os seus rostos e comentários, agora crê. E mostrou-o aplaudindo muito, e muitos também o mostraram pondo-se de pé.”

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Mísia em Giosefine Carlos Furman/Teatro Regio
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Mísia em Giosefine Carlos Furman/Teatro Regio

Em Coimbra, onde o espectáculo teve estreia nacional, em 27 de Abril (no Teatro Gil Vicente, no âmbito da 19.ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, em co-produção com o Complejo Teatral de la Ciudad de Buenos Aires, que o viu nascer), a reacção foi também justificadamente entusiástica, embora a sala pedisse mais público. No palco, no papel de um travesti argentino nascido em Itália (que, na sala de operações onde irá mudar de sexo, escreve uma carta à irmã, Lina, contando a sua história, que passa pela feérie dos palcos e do canto), Mísia agarra a audiência com uma dicção clara e uma interpretação brilhante naquilo que é, como ela própria o descreveu, “um duplo salto mortal entre géneros, da Música para o Teatro, de Homem para Mulher.” Uma mulher que faz de homem que faz de mulher e em mulher se transforma, é essa a essência da história, que renasceu no dia em que emprestaram a Mísia o livro O Jogo do Reverso, de Antonio Tabucchi. Ela fixou-se num dos seus contos, “Carta desde Casablanca”, e quis adaptá-lo aos palcos. Sugeriu-o a Guillermo Heras (actor, encenador e dramaturgo espanhol), que aceitou; e convidou também o maestro e pianista napolitano Fabrizio Romano, com quem tem feito dupla em várias ocasiões e espectáculos. Nascia assim Giosefine, a segunda e mais arriscada incursão de Mísia no teatro (a primeira foi Matadouro Invisível, de Karin Serres, na Malaposta, em Dezembro de 2013).

Em Buenos Aires, Giosefine esteve dez noites, de 17 a 28 de Dezembro de 2016. Em Coimbra esteve uma noite só. Quem viu, não duvida: devia ter mais sessões, noutras cidades e palcos. Porque há nele motivos bastantes para uma divulgação maior, desde a sua origem (o saber de Tabucchi) até à sua concretização em palco por uma cantora que nele pôs todo o seu empenho, dedicação e arte, trazendo à ribalta, com humor, memórias da música e do cinema (como Rita Hayworth, em Gilda).

Em 2004, no final de um espectáculo que Mísia acabara de dar em Coimbra, precisamente no Gil Vicente, um estudante comentou assim o que ouvira: “Mísia antecipou esta nova vaga [no fado] e abriu caminho. Mas talvez esta nova vaga de fadistas venha ajudar outras pessoas a descobrir a Mísia, que andava um bocado esquecida”. Andava? Apesar de ter 25 anos de carreira, em Portugal ainda há quem lhe diga, no final de um espectáculo: “Gostei muito de a ouvir, não conhecia nada seu”. Isso entristece-a, claro. Mas o “motor” não pára, pelo contrário. Está até mais acelerado. Depois de Giosefine, estará no CCB, em Lisboa, a cantar “os seus Poetas” no Grande Auditório, no dia 19 de Maio, num espectáculo integrado no ciclo Há Fado No Cais. E em Setembro voltará à Argentina, para apresentar, não um mas dois espectáculos diferentes: Para Amália e Do Primeiro Fado ao Último Tango, no histórico Centro Cultural Néstor Kirchner, em Buenos Aires. E talvez haja novo disco à espreita. Tudo razões para que haja mais gente a dizer: “Mísia? Eu sei quem é”.

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Mísia em Giosefine Carlos Furman/Teatro Regio

Correcção: No segundo parágrafo, onde, por lapso, estava "27 de Maio" passou a estar, correctamente, 27 de Abril.

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