Racionalismo partidário

Um excelente ponto de partida seria controlar a tentação sistemática de invocar extremismos onde eles não existem. Realçar as diferenças entre os partidos, sim. Mas não ao ponto de tentar vender o “outro” como perigoso radical, como se “diferente” fosse sinónimo de extremista.

Num contexto global que ruma ao entrincheiramento rígido e em que os consensos rareiam, persistem últimos redutos, cuja concordância ainda dispensa esforço. A constatação da ausência de movimentos xenófobos e populistas no palco político português é um exemplo feliz desse entendimento. Todos nós apreciamos vender Portugal como um território tolerante e multicultural, espaço em que os extremismos não têm expressão politicamente demarcada.

Totalmente de acordo. De facto, quando olhamos além-fronteiras, este é um bem cada vez mais escasso, infelizmente. Mas quando nos viramos para o debate parlamentar nacional, o que constatamos? Que à mínima provocação se soltam desbragadamente expressões como “extrema-direita” ou “esquerda radical” para rotular os opositores dentro do parlamento. Apodar, melhor dito, pois são proferidas com o fito de insulto e menorizando opiniões com base em estigmas latentes. Forma também é substância.

É, por isso, crucial que não seja o próprio parlamento português a conceber esses extremismos artificiais. Convém recordar o conceito da performatividade e o trabalho do filósofo da linguagem John L. Austin. Neste conceito verificamos a capacidade do discurso ultrapassar a mera comunicação, materializando uma ação, ou mesmo construindo e desempenhando uma identidade. Por exemplo, quando um padre declara “declaro-vos marido e mulher” ou quando um juiz pronuncia o seu veredito, estas frases não são meras constatações da realidade, mas sim ações concretas.

Judith Butler aplicou este conceito ao estudo de género, onde se concentra no poder reiterativo do discurso que produz os fenómenos que regula e controla. Aqui, a identidade é criada através do discurso e reforçada pela lei ou pelas normas sociais, especialmente pela repetição de discursos, atos, símbolos e gestos.

As palavras são assim mais que um aglutinar de sílabas – elas formam a nossa realidade e a nossa identidade. O poder da palavra é tamanho que, uma vez vociferada numa sala, ela molda a realidade em que se insere. Assim, utilizar sistematicamente o recurso a populismos e extremismos para descrever a política nacional, coloca estes conceitos num plano bem concreto da arena política.

Cada vez que uma bancada lança essas nomenclaturas para o outro lado do plenário, são os próprios agentes políticos – sim, aqueles que dizem que em Portugal não há populismos xenófobos, não esquecer! – que estão a cimentar o caminho para a chegada de perigosos e reais extremismos.

Com estas práticas invoca-se não o diabo (em jeito de Bulgakov) mas sim os populismos. Atualmente, este pode ser um vazio real no panorama partidário. Mas sabemos bem o que acontece com os vazios: são preenchidos. Resta saber com que protagonistas. Sessões plenárias que mais se assemelham a sessões de “espiritismo” – socorrendo-se do radicalismo no “outro” – em nada favorecem nem a manutenção do status quo (ausência de extremistas no parlamento), nem o desenvolvimento de novas práticas moderadas de parlamentarismo.

O peso do mandato atribuído em 2015 a todos os 230 deputados é precisamente o de manter a moderação no centro da atividade parlamentar. Claro que Roma não foi construída num dia, e esta é uma tarefa muito delicada, dado que o digladiar partidário é o resultado de uma constelação de fatores endógenos e exógenos a cada parcela partidária.

Mas um excelente ponto de partida seria controlar a tentação sistemática de invocar extremismos onde eles não existem. Realçar as diferenças entre os partidos, sim. Mas não ao ponto de tentar vender o “outro” como perigoso radical, como se “diferente” fosse sinónimo de extremista. Não é isso que o dicionário nos diz.

Haverá quem diga que isto é idealismo a mais. Mas não é disso que se constrói a atividade política? É esta a natureza deste apelo: pelo racionalismo partidário. Custe o que custar. Porque o seu inverso será infinitamente mais caro à nossa democracia.

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