Os braços de Rory Delap eram decisivos e ele nem era guarda-redes

A história do irlandês que lançava o dardo e cuja carreira como futebolista só arrancou verdadeiramente aos 30, depois de partir uma perna.

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Os longos lançamentos de Delap fizeram história na Premier League Darren Staples/Reuters

Benito Floro, treinador espanhol no exílio (está na Costa Rica, mas já treinou o Real Madrid), dizia o seguinte dos lançamentos de linha lateral. “60 a 70 por cento das ocasiões de golo nascem de um lançamento de linha lateral em três quartos do campo, por falta de atenção. O futebol joga-se com os pés, por isso será difícil fazê-lo com as mãos. Se estiveres atento, será difícil que o rival te surpreenda”, disse em tempos Floro. Para todos os efeitos, o lançamento lateral é um lance de bola parada, em que, tal como um livre ou um canto, o objectivo é apanhar o adversário distraído, mas Floro por certo não estaria a pensar em Rory Delap, o irlandês dos braços-canhão. Toda a gente já sabia o que ele fazia e, mesmo assim, ele continuava a ter sucesso no que fazia: lançamentos de 40 metros para a área mais pânico na defesa adversária igual a muitos golos.

Usar o lançamento lateral como arma ofensiva é algo relativamente normal. Jorge Jesus, por exemplo, fazia muito isso no Sporting quando tinha Slimani a ganhar posição em zonas avançadas. Antes, no Benfica, usava Binya ou Salvio para os lançamentos longos (o argentino continua a fazê-lo com Rui Vitória), e, mais recentemente, Aron Gunnarson, fez o mesmo (e com bons efeitos) na extraordinária campanha da Islândia no Euro 2016. Mas nenhum deles tinha o poder de Delap, um irlandês nascido em Inglaterra, que fazia com as mãos o que muitos fazem com os pés. Não eram lançamentos em arco, bombeados para a área, eram mísseis que iam quase em linha recta, tensos e com efeito. Delap, um médio polivalente e com alguma apetência goleadora, teve uma carreira longa, mas só aos 30 é que se deu por ele, depois de ter partido uma perna.

Depois de oito épocas consecutivas na Premier League, primeiro no Derby County, depois no Southampton, Delap foi com os “Saints” para a segunda divisão e transferiu-se a meio da época 2005-06 para o Sunderland (que também desceu de divisão), mas na época seguinte seria emprestado ao Stoke City, que também estava no Championship. No seu segundo jogo pelos “potters”, frente ao Sunderland, Delap partiu uma perna, o que para um jogador de 30 anos, seria quase uma sentença de reforma antecipada. Mas não foi. O Stoke ficou com Delap, que voltaria a jogar apenas na época seguinte. Mas desta vez com outra arma para o qual os adversários não estavam preparados.

Avancemos até 2008, em que o Stoke City, que é um dos clubes mais antigos de Inglaterra (fundado em 1863) e um dos membros originais do primeiro campeonato inglês em 1888-89, regressou ao convívio dos grandes 23 anos depois. Tony Pulis era o treinador e, não tendo os mesmos recursos das outras equipas, descobriu nos braços de Delap uma improvável arma ofensiva. E não era uma arma ocasional. Os apanha-bolas do Britannia Stadium, por exemplo, tinham toalhas para que Delap pudesse secar a bola antes de a lançar, e alguns adversários preferiam dar um canto ao Stoke City em vez de um lançamento. Até Scolari, na altura treinador do Chelsea, estava impressionado: “Passa melhor a bola com as mãos do que com os pés. Nunca vi nada assim. Pode não ser bonito, mas era eficaz.”

O Arsenal foi uma das primeiras vítimas das bombas de Delap, sofrendo uma derrota por 2-1 e com os dois golos a nascerem de lançamentos do irlandês. E Wenger, depois disto,chegou mesmo a sugerir que se acabasse com os lançamentos laterais, argumentando que o futebol ficaria mais rápido. Nessa primeira época foram oito golos da responsabilidade de Delap, mais cinco na segunda época e quatro na terceira. Na quarta época já pouco funcionou e na época seguinte foi emprestado, acabando a carreira no Burton Albion, da quarta divisão, com 37 anos.

Pelo meio, ainda se falou de uma possibilidade de Delap representar a Irlanda nos Jogos Olímpicos de Londres como lançador do dardo, ele que tinha sido campeão jovem da disciplina antes de se voltar para o futebol. “Devem estar mesmo a rapar o fundo ao tacho para pensarem em mim”, dizia Delap, o improvável revolucionário, que ganhou o seu cantinho na história do futebol, literalmente, com força dos seus braços.

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