Crítica e mitologia romântica

O momento mais alto da actividade crítica e ensaística de Eduardo Lourenço encontra-se neste terceiro volume das suas Obras Completas.

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Alguém que olha para trás não por estar atrasado em relação ao seu tempo, mas porque lhe apreendeu a sua essência trágica Enric Vives-Rubio

Tempo e Poesia já era, na sua primeira versão, publicada em 1974, a obra mais importante de crítica e ensaio literário de Eduardo Lourenço. Agora, enormemente ampliada com material inédito e disperso, de maneira a constituir um grosso volume de mais de 700 páginas, não é certamente exagerado dizer que reside aqui o núcleo mais importante de todo o ensaísmo de Eduardo Lourenço (e não apenas o ensaísmo literário). Este terceiro volume das Obras Completas de Eduardo Lourenço, um trabalho editorial de grande envergadura da responsabilidade científica de João Tiago Pedroso Lima (Universidade de Évora) e de Carlos Mendes de Sousa (Universidade do Minho), é coordenado por este último, que assina uma extensa (mais de 40 páginas) e excelente introdução.

Todo o material deste volume é atraído para três lugares de questionamento fundamentais: uma concepção da literatura (ou antes, da poesia, já que é a esta que Eduardo Lourenço concede uma essencial supremacia), uma concepção da crítica e uma análise e até uma revisão do modernismo literário português, da geração do Orpheu, da Presença e da geração da qual Eduardo Lourenço esteve do ponto de vista crítico e biográfico muito próximo: a de Torga, de Carlos de Oliveira, de Jorge de Sena, de Eugénio de Andrade, de Sophia, para mencionar apenas alguns nomes da imensa lista que vai sendo convocada ao longo destes ensaios.

Fernando Pessoa foi, para Eduardo Lourenço, o centro de irradiação de um terramoto cujos abalos sucessivos ele procurou medir, como um sismógrafo, sempre com uma atitude de espanto, mas também com a forte consciência de que era preciso confrontar-se, no plano crítico e teórico, com as consequências de longo alcance desse acontecimento. Esse confronto determinou, antes de mais, a escolha de uma atitude crítica, que ele definiu não como a que se exerce num tribunal onde as obras são julgadas, mas como aquela em que toda a tarefa do crítico implica uma “osmose” (a palavra pertence-lhe) com o seu objecto. Daí, esta reflexão de carácter programático: “Decidi, por conseguinte, que os Poetas seriam os meus guias e não os críticos”. Talvez a muita gente esta afirmação e todo o exercício que dela decorre parecesse suspeita, próxima de misticismos poéticos e superstições amigas do inefável. Mas a questão é outra: se a crítica tem como missão a identificação com a palavra literária, procedendo a um alargamento desta a partir do seu interior, não é tanto pela pretensão de ser “criativa” ao mesmo nível, mas, ao invés,  porque o poema — a obra literária —  já integra o seu momento crítico. Ora, foi neste questionamento interno da poesia — a suspeita e a cisão a que ela se submete por meio da auto-reflexão —, análogo ao da filosofia, fazendo do poema um medium do conhecimento, que Eduardo Lourenço descobriu o cerne da revolução pessoana e da geração do Orpheu. O autor de Tempo e Poesia pratica assim, no mais alto grau, uma leitura imanente, o que implica uma metodologia contrária àquela, então dominante ou mesmo exclusiva, que aborda as obras do exterior: as leituras historicistas e sociológicas. Esta leitura imanente mostra o modo como o poema, a obra literária, faz trabalhar a sua própria matéria e em que direcção. Continuar a obra, extraindo-lhe o nó crítico para revelar o que ela tem de absoluto, eis a concepção de crítica teorizada e praticada por Eduardo Lourenço. Tomando a poesia de Pessoa como referência, várias vezes ele fala da “poesia como realidade absoluta” e da “encarnação sensível do Infinito no finito”, isto é, de um absoluto literário. 

Ao encontrar nas mais elevadas experiências literárias da modernidade, como é a experiência pessoana, um modo de pensar poeticamente o mundo, que é de certo modo uma declinação e actualização da questão hölderliniana do “habitar poeticamente esta terra”, Eduardo Lourenço situa-se no seio de uma definição do trágico moderno — o trágico que nasce da tensão entre a imanência mais extrema da linguagem autotélica da poesia (em que a materialidade da palavra literária e o fascínio por si própria ocupam o lugar de um deus, mas de um hegeliano deus que se auto-destrói) e um horizonte mítico-religioso.

Todos estes conceitos, categorias e referências que usámos para perceber a concepção de poesia e de crítica que estão na base dos ensaios de Tempo e Poesia devem muito ao romantismo. Não aquele romantismo da afectação sentimental e emotiva do Eu, mas o chamado romantismo teórico, como é o primeiro romantismo alemão (um exemplo: quem não pensa imediatamente em Novalis quando Eduardo Lourenço fala da “poesia como realidade absoluta”?). Desta espécie romântica é sem dúvida a reivindicação lourenciana de que há um saber filosófico da poesia e que, por conseguinte, é através desta e não da filosofia que se dá o conhecimento da verdade do tempo. Romântica, seguramente, é a ideia de que a busca da crítica, a indagação que lhe cabe cumprir, não consiste em apreender o seu objecto, com instrumentos que tentam o domínio e a posse, mas assegurar as condições da sua inacessibilidade. Daí decorre um dos ensaios mais importantes deste livro, “Esfinge ou a Poesia”, onde se faz esta afirmação que se presta a tantos equívocos, na medida em que se revela apta a satisfazer os desejos de uma mística que nasce da ignorância: “Compreender a Esfinge, compreender a poesia é olhá-la sem a tentação de lhe perguntar nada. É aceitar o núcleo de silêncio donde todas as formas se destacam”. Esta afirmação não é uma abdicação da crítica, mas exactamente o seu contrário, isto é, a consciência de que a poesia se tornou uma das espécies da crítica e que há uma questão crítica da literatura que consiste numa busca da sua identidade, arrastando consigo a filosofia e abrindo o espaço daquilo a que, na época em que Eduardo Lourenço publicou estes ensaios (muito embora parte deles tenham sido escritos ainda dos anos 50), tinha um nome respeitável e cheio de encantos entretanto desfeitos: a “teoria”. Eminentemente romântica, também da espécie teórica do primeiro romantismo alemão, é o recurso à escrita alegórica e à mitologia. Como sabemos, a alegoria tem um papel importante no quadro da especulação filosófica do romantismo. A sua função era representar o que só podia apresentar-se de maneira fragmentária e fugaz (daí a importância do fragmento romântico, do qual Schlegel deu uma célebre definição), figurar um absoluto no seio do finito. Em Tempo e Poesia, Eduardo Lourenço recorre à mitologia romântica, desenvolvendo as suas especulações críticas a partir do mito de Édipo e da Esfinge e do mito de Orfeu. Tal como os românticos, ele identifica o mito e a poesia com uma mesma origem.

Tudo isto torna o discurso crítico e ensaístico de Eduardo Lourenço pleno de uma consciência trágica. Lendo hoje Tempo e Poesia temos a sensação de que é um livro de um tard venu, alguém que olha para trás não por estar atrasado em relação ao seu tempo, mas porque lhe apreendeu a sua essência trágica e, desse modo, até se torna tão intempestivo como um profeta que se volta para o passado (que é o modo como Schlegel definia o historiador). Muito mais em sintonia com a contingência histórico-literária nacional do seu tempo estiveram a Presença e Miguel Torga, que Eduardo Lourenço remete, respectivamente, com fortes argumentos, para o lado da “contra-revolução” (num ensaio que causou enorme polémica, e até algum mal-estar, intitulado Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?) e do “humanismo” cheio de boa-consciência literária, num outro ensaio sobre Miguel Torga, intitulado O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações. “Humanismo” era, então, uma palavra que, por cá, não causava suspeitas, e por isso este ensaio foi muitas vezes lido ao contrário, coisa não rara na recepção crítica de alguns ensaios de Eduardo Lourenço e da qual ele não está certamente isento de culpas. Quem se atrevia nesse tempo dizer-se anti-humanista nesta pequena república das Letras e das “Humanidades”? Só um crítico da espécie não conforme ao tempo português, como é aquele deste Tempo e Poesia.

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