Quando a luta não continua

Júlio de Almeida foi e é do MPLA. Mas está desiludido. E vai daí agarrou-se à ficção para com as armas da literatura se entregar a um ajuste de contas com a realidade.

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Todas as revoluções tendem à antropofagia e a da Angola não fugiu à gula canibalesca. Parte da geração que lutou na mata pela libertação do colonialismo português morreu, matou-se, definhou, fugiu, foi abandonada. Outra viu-se invadida pelo desânimo, não se revendo hoje no contraste extremo com os sonhos de ontem.

Júlio de Almeida foi e é do MPLA. Mas está desiludido. Resguarda-se como reserva moral mas já não acredita em qualquer poder regenerador da actual geração de líderes. E vai daí agarrou-se à ficção para com as armas da literatura se entregar a um ajuste de contas com a realidade. Com alguma tristeza, mas sem mágoa; com humor angolano de rir das coisas sérias, sem evitar a melancolia ao ver no que a luta se tornou.

Mesmo que a luta não tenha alcançado para construir o país que sonharam, valeu a pena só assim. Valeu a pena pela luta, acredita o comandante Juju que chegou a ser uma das vozes mais conhecidas de Angola quando em 1975

1976 lia todos os dias os comunicados na Rádio Nacional de Angola sobre os avanços da guerra antes do telejornal.

Para isso inventa um amor fugaz (tudo se passa em quatro dias no ano de 1999) entre os protagonistas que lhe permite um diálogo em torno de décadas de história angolana enquanto se conhecem – desde a sobrevivência na mata, passando pela subsistência na economia de mercado –, ao mesmo tempo que essa tangente do tempo que os foi quase unindo sem nunca se concretizar acaba por transformar-se na circunferência do desejo presente.

Livro de memórias, “Vaicomdeus, SARL” disfarça-se de ficção para inventar um amor entre um homem com traços do autor e uma mulher que seria a personificação do próprio país. Eugénio seria, então, um heterónimo ficcional do autor e Cecília, ou Sissy, a própria Angola, nação jovem, nascida da luta, com muitas cicatrizes, órfã, mas cheia de ânimo e vigor para se desenrascar nas vielas do capitalismo por um bem oleado instinto de sobrevivência.

Os erros do MPLA, os desvios do caminho, a transformação equivocada do movimento em partido marxista-leninista num país onde os camponeses não sabiam o que isso era, os operários não existiam e apenas um punhado de intelectuais o eram verdadeiramente, de tudo isso fala o livro. E, depois, a transformação dessa estrutura (ainda hoje o MPLA é “o partido) numa inescrupulosa máquina capitalista muitas das vezes desregrada. De tudo isso se faz o desencanto de Eugénio.

E não sendo a habitual obra amarga daqueles que procuram ajustar contas literárias com uma realidade que os desiludiu, o livro de Júlio de Almeida sublinha logo a abrir quando esclarece o leitor: “As personagens já falecidas, porque eternamente verdadeiras, aparecem com os seus próprios nomes. As outras personagens, ainda falsas, porque vivas (e talvez mesmo, ainda vivas porque falsas) levam nomes de conveniência.”

Sendo um livro político, uma obra-tese, Vaicomdeus, SARL acaba por se deixar manietar de alguma forma no alcance da história e impede o seu par de protagonistas – o velho guerrilheiro que se afastou da ribalta e dá aulas de Matemática e a empresária órfã com a mesma idade do país – de ganhar mais densidade psicológica para lá da indispensável ao desenrolar do livro.

Mas a capacidade do escritor em contar histórias, em dar aos episódios a patine do valor testemunhal, a sua capacidade de rir da adversidade e, sobretudo, esse enorme optimismo em relação ao futuro, impede o livro de se perder no desconsolo e dá-lhe o sopro para afastar a amargura estéril em que podia ter caído. 

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