No nuclear o rei (também) está em Espanha

O acordo amigável anunciado esta quarta-feira entre Portugal e Espanha sobre a construção do aterro de resíduos nucleares na central de Almaraz, que abre tréguas de pelo menos dois meses entre os dois países, dá-nos, numa primeira leitura, a certeza (da forma) e só numa segunda começamos a ter dúvidas (de conteúdo).

O texto diz, em resumo, que os dois países cedem ambos um bocadinho nas suas pretensões: Espanha aceita que o projecto da construção do aterro seja sujeito a consulta pública para lá da sua fronteira e Portugal, por seu lado, aceita retirar a queixa contra o país vizinho. O governo de António Costa exigia acesso a informação sobre o projecto e a realização de uma consulta pública transfronteiriça, que não se confinasse ao raio de poder de Madrid (a avaliação de impacte ambiental do lado espanhol está feita e sustenta a autorização da construção do aterro), tal como prevê o direito comunitário e tratados internacionais sobre casos como este.

A dessintonia começa quando o mesmo acordo diz que tudo isto tem o prazo de dois meses para ser feito - e Madrid não pode tomar medidas irreversíveis neste período -, Portugal leva de bandeja a enésima promessa de que as interligações de electricidade e gás com Espanha e com a Europa vão acelerar – quando se sabe que tudo depende da vontade dos franceses - e, hélas, Lisboa pode repor a queixa que lhe permite chegar ao Tribunal Europeu de Justiça se considerar, no final, que tem razões para isso.

Questão de conteúdo: o que preocupa Portugal não é o aterro nuclear, é ele significar que a vida da central de Almaraz será prolongada por mais 20 anos. O ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, reconheceu-o várias vezes e é isso que preocupa também os ambientalistas portugueses e espanhóis.

A tradição europeia de negociação de conflitos com centrais nucleares tem preferido a mitigação de efeitos com a adopção de medidas adicionais que vierem a ser tidas como necessárias, nunca o chumbo dos projectos. E é de “um diálogo e um processo de consulta construtivo com vista a alcançar uma solução para o actual litígio” sobre Almaraz que o acordo amigável fala. Não de um chumbo, mesmo que eventualíssimo.

Entre o dia do acordo (3 Fevereiro) e o dia da sua divulgação, Espanha foi dando mais uns passos. O Conselho de Segurança Nuclear espanhol (dia 9) deu parecer favorável ao prolongamento de operação da central nuclear de Garona (parada desde 2012) até completar 60 anos, uma decisão que abre um precedente para as outras centrais espanholas, Almaraz incluída; (dia 11) a administração da central de Almaraz confirmou que vai pedir a licença para mais 20 anos, chegando aos 60, no final.

O litígio assumido entre os dois países justificou o envolvimento directo do presidente da Comissão Europeia, que aproveitou a cimeira de La Valletta, em Malta, para sentar António Costa e Mariano Rajoy à mesma mesa. A arte da negociação e dos acordos lembra, muitas vezes, o xeque ao rei no xadrez. Neste caso concreto, prefigura-se um xeque ao peão. Até o ministro do Ambiente o admite, quando diz aos deputados que "a decisão final cabe sempre ao licenciador da obra". O rei está do lado de lá.

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