Como um obscuro deputado ucraniano conseguiu fazer-se ouvir na Casa Branca

Um pouco credível plano alternativo de paz para a Ucrânia para reaproximar a Rússia e os EUA chegou às mãos de Michael Flynn poucos dias antes de se demitir. Como foi possível chegar tão perto de Donald Trump?

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Os laços entre Donald Trump e a Rússia têm sido objecto de um intenso escrutínio Kevin Lamarque/REUTERS

O deputado ucraniano Andrii Artemenko, o advogado e conselheiro de Trump, Michael Cohen, e um empresário de origem russa que chegou a ter negócios com a Trump Organization, Felix Sater, reuniram-se no final de Janeiro num hotel em Nova Iorque para discutir um “plano de paz na Ucrânia” e para uma reaproximação entre os EUA e a Rússia. Poucos dias depois, estava na secretária de Michael Flynn, então ainda conselheiro para a Segurança Nacional de Donald Trump.

O New York Times descreve a reunião: a proposta foi apresentada por Artemenko, um pouco conhecido deputado da oposição ao Governo de Kiev, que disse ao jornal ter dois objectivos: “Primeiro, quero acabar com uma guerra. Segundo, acredito absolutamente que os EUA e a Rússia devem ser aliados e não inimigos. Se pudesse alcançar ambos os objectivos numa só jogada, seria um home run (um tipo de jogada célebre no basebol).”

O plano envolve a retirada de todas as forças russas no território ucraniano – que Moscovo diz não existirem – e um referendo para decidir uma eventual concessão da Crimeia à Rússia por 50 ou cem anos. Artemenko disse ainda ter na sua posse material que poderia provar o envolvimento do actual Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, em casos de corrupção – e, eventualmente, levar à sua queda.

Cohen, advogado pessoal de Trump desde 2007, disse ao NYT que fez chegar um “envelope selado” com a proposta  a Michael Flynn, no início de Fevereiro. Dias depois, porém, Flynn demitia-se na sequência da divulgação dos contactos que teve com o embaixador russo em Washington antes da tomada de posse da nova Administração. Após a publicação da notícia, Cohen veio desmentir ter feito chegar a proposta à Casa Branca, mas o Times mantém a sua versão, que diz ser corroborada por Sater.

A revelação surge numa altura em que as relações entre a Administração Trump e a Rússia estão sob intenso escrutínio, especialmente depois da demissão de Flynn – cujos contornos têm motivado pedidos para a abertura de uma investigação pelo Congresso. Há igualmente pouca clareza quanto à estratégia que Trump pretende adoptar em relação à Rússia.

Trump tem elogiado o seu homólogo russo, Vladimir Putin, e deu a entender que, em nome da luta contra o terrorismo no Médio Oriente, os EUA poderiam recuar no actual regime de sanções, em vigor pela interferência russa no conflito ucraniano e pela anexação da Crimeia. Porém, na semana passada, Trump voltou a alinhar-se com a posição dominante no establishment norte-americano e exigiu a devolução da península à Ucrânia.

Plano que ninguém quer

A notícia foi recebida com muito desagrado tanto pela Ucrânia como pela Rússia. O embaixador ucraniano em Washington, Valerii Chali, disse que Artemenko “não está capacitado para apresentar planos de paz alternativos em nome da Ucrânia a nenhum Governo estrangeiro”. Em Moscovo, a iniciativa do deputado ucraniano – que disse ter tido apoio de “altos dirigentes” do Kremlin – foi descrita como “absurda”. “É impossível pagarmos uma renda por uma coisa que é nossa”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov.

Tanto Kiev como Moscovo reclamam a Crimeia e não parecem inclinados a encontrar uma solução intermédia, e mesmo entre a generalidade dos analistas ideias como a da concessão não são conhecidas. O próprio deputado não esconde que a sua iniciativa é também uma forma de fazer progredir a sua carreira política. Segundo o NYT, Artemenko apresenta-se como um político “ao estilo de Trump”. Esta segunda-feira, porém, foi expulso do Partido Radical, pelo qual foi eleito.

Ao PÚBLICO, o deputado do partido Pátria, Alexei Riabchin, diz que mal conhecia Artemenko, que descreve como “pouco activo” no Parlamento. A notícia de que este antigo empresário apresentou um plano de paz alternativo para a Ucrânia foi recebida com surpresa em Kiev. Riabchin diz, no entanto, que a iniciativa “praticamente não tem apoio, mesmo entre os sectores pró-russos”.

O caso levanta questões quanto à forma acessível como iniciativas como esta conseguem chegar à mesa de altos responsáveis da Administração americana. A eleição de um Presidente como Trump, proprietário de um império empresarial com interesses em praticamente todos os continentes, levanta problemas nunca antes vistos com outros líderes norte-americanos. Um dos pontos mais frequentemente aludido por juristas é a quantidade sem precedentes de potenciais conflitos de interesse entre os negócios da Trump Organization e as políticas da Administração.

Porém, os laços informais estabelecidos ao longo de décadas de negócios são também uma forma de expor a Casa Branca a um lobby pouco comum. Tudo indica que foi esse o caso da proposta de Artemenko. Segundo o Washington Post, foi Felix Sater – um empresário com ligações na Rússia, que chegou a ser condenado por um caso envolvendo a máfia nova-iorquina e que fez vários negócios com Trump – que conseguiu marcar a reunião em que o deputado apresentou o seu plano a Cohen, garantindo desta forma um acesso privilegiado ao Executivo dos EUA.

Fazer chegar uma ideia ou uma proposta ao gabinete de um alto responsável de qualquer Governo para consideração é normalmente uma difícil tarefa em que é necessário ultrapassar o crivo de uma série de assessores e conselheiros. Com Donald Trump na Casa Branca parece bastar uma reunião com as pessoas certas.

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