The Molochs: velhos espíritos a dançar num corpo muito jovem

The Molochs retiraram o nome ao famoso poema de Ginsberg, O Uivo, e encontram nas raízes folk e blues o fundamento para tudo. Cobrem-nas de electridade, olham para tudo o que se seguiu até chegarmos aqui, carregam na honestidade. Nasce America's Velvet Glory

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Eles dizem que são da folk e do blues. Ou melhor, que é nessas raízes que encontram ferramentas para comunicar com o mundo. Mas não se procure aqui o cancioneiro de Robert Johnson ou de Pete Seeger, porque o blues e a folk são o início. O fim, aquilo que ouvimos em American’s Velvet Glory, o segundo álbum da banda, é música que se alimenta do que veio depois, do que veio de todo o lado (os Byrds e Jonathan Richman, os Brian Jonestown Massacre e os Rolling Stones, Syd Barrett e os Velvet Underground), devidamente canalizado por um homem que acredita que, “mesmo que tentasse fingir que não estou a viver no presente, não o conseguiria”. Explica porquê. “Ao tentar expressar o que sinto da forma mais honesta possível, reflectirei o mundo em que vivo, quer isso seja consciente ou não”. Eles são dois, Lucas Fitzsimmons, o vocalista, guitarrista e compositor que fala com o Ípsilon, e o fiel comparsa, Ryan Foster, que também participa na chamada telefónica em conferência, mas que deixa a conversa toda para Lucas. Eles são The Molochs e a culpa é de um certo poema de Allen Ginsgberg, O Uivo, lido pela primeira vez em 1955 e que se transformou em marco da poesia beat e da geração dos que a fizeram.

Moloch era uma divindade das civilizações do Médio Oriente referido no Antigo Testamento como demónio que se alimentava da pureza infantil. Nos rituais que lhe eram dedicados, abandonados com a implantação das religiões monoteístas, a estátua de bronze que o representava era aquecida com fogo e crianças sacrificadas nas cavidades escavadas no seu dorso. Lucas Fitzsimmons não tinha este cenário tenebroso na cabeça quando sugeriu The Molochs como um dos baptismos possíveis para a banda. Estava a pensar na segunda parte do poema de Ginsberg, iniciado com os seguintes versos: “What sphinx of cement and aluminum bashed open their skulls and ate up their brains and imagination? / Moloch! Solitude! Filth! Ugliness! Ashcans and unobtainable dollars! Children screaming under the stairways! Boys sobbing in armies! Old men weeping in the parks! / Moloch! Moloch! Nightmare of Moloch! Moloch the loveless! Mental Moloch! Moloch the heavy judger of men!”.

América e seus filhos

O Uivo’ surgiu nos anos 1950, quando a sociedade americana se estava a tornar muito homogénea, com a implantação da cultura suburbana, com a cultura consumista que parecia tornar toda a gente igual, indistinta. Ginsberg apresenta a ideia de Moloch como representação dessa força que negava a juventude. Daí a ligação ao sacrifício de crianças. Era como se a América estivesse a sacrificar os seus filhos a uma vida perigosamente mundana, como se a sacrificasse a um monstro capitalista”. Como acontece no blues e na folk em que primeiro se inspira, Lucas Fitzsimmons, estudante de História na Universidade, vê nesse paralelismo criado por Ginsberg algo de profundamente actual. Mas agora não é conformismo que assusta - sim, tínhamos que ir parar a Trump. “Posso tentar arranjar palavras bonitas e fingir que o que está a acontecer neste momento não é tão mau quanto parece, mas é”. Ao mesmo tempo, reflecte, “não é a primeira vez que nos deparamos com momentos destes. Devemos preocupar-nos e mantermo-nos atentos, mas tendo consciência que isto não é inédito. Quanto a nós, vamos continuar a fazer o que temos feito. É isso que temos para oferecer, e é isso que é bom na música. Serve de escape mas, ao mesmo tempo, desperta-te e mantém-te vivo”. O que têm para oferecer, agora, é America’s Velvet Glory. E escusam de procurar nele proclamações por insurreição ou comentários à situação política. The Molochs são artífices e operários da canção. São pessoal do rock’n’roll fascinado com a sua história e com essa coisa indefinível e fascinante que nasce quando os elementos certos são reunidos.

Ten thousand
No more cryin
New York
The one I love
No control
Little stars

Num momento deixam um órgão Vox fervilhar sobre o palavreado em tom grave e tudo é dança como Jonathan Richman nos ensinou (Ten thousand”). Noutro são tomados pelo espírito rhythm’n’blues dos velhos Rolling Stones e, harmónica ao alto, nasce o single No more crying ou a trepidante No control – que é rhythm’n’blues tomado pelo espírito neurótico do pós-punk. A meio, há espaço para trautear harmonias solares sob o céu cristalino de uma guitarra de doze cordas (os Byrds e os Strange Boys a unirem-se em The one I love), para ver surgir perante nós, em som e imaginário, uma personagem chamada Charlie que podia ter saído da cabeça de Syd Barrett ou Anton Newcombe (Charlie's lips) ou para ouvir uma homenagem aos Velvet Underground na apropriadamente intitulada New York – solo de guitarra retirado directamente de White Light White Heat incluído.

Quando editaram em 2013 Forgetter Blues, o primeiro álbum, “a influência estava mais nas raízes, na folk e no blues, nos anos 1960”. Daí para cá, essa fundação cobriu-se de novos sons e Lucas Fitzsimmons não tem qualquer pudor em apresentá-los. “Os Gun Club, os Jacobites ou os The Only Ones, rock’n’roll mais tardio, mas baseado no mesmo que primeiro nos inspirou, o que nos deu toda uma série de novas ideias sobre como reinterpretar a música que ouvimos”.

Lucas Fitzsimmons, filho de pais argentinos a viver desde os três anos em Los Angeles, vê-se como elo numa longa cadeia. Procura que, da honestidade na abordagem musical, sobressaia não propriamente algo de novo, mas uma personalidade que não se confunda com tudo o resto. “Hoje em dia é fácil atingir, quase matematicamente, o som de um género muito específico. Isso é porreiro, divertido e requer talento, mas se não te puseres ali não haverá substância que permita à música tornar-se duradoura. Precisas de aceder a qualquer coisa, algo de único. E nem é preciso tentar muito arduamente, só é necessário ser completamente honesto”.

Lucas Fitzsimmons compõe em casa, com guitarra acústica e papel e caneta para apontar as letras – “as canções que não sobreviverem a esse nível, são postas de lado, não me interessam”. Depois, leva-as a Ryan Foster, que lhes acrescenta uma segunda camada de guitarra eléctrica ou órgão. Por fim, chegam os baixos, a bateria, as pandeiretas. Toca-se estritamente o indispensável para capturar a vitalidade da canção – “tocá-las demasiadas vezes fá-las perder o espírito e pode acabar por matá-las”. Três ou quatro dias depois, nasce um álbum. Que pode ser, que é American’s Velvet Glory. Um disco de velhos espíritos a dançar muito vivos em corpos jovens. 

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