O que aprendemos com uma comuna de 1974?

A Comunal, cooperativa fundada em Árgea a seguir ao 25 de Abril, é o ponto de partida para uma performance de André Guedes no ciclo Utopias do Maria Matos.

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No Maria Matos a história é encenada nos dois diaporamas André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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Um grupo de pessoas segurando peças em tamanho grande num espaço exterior André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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Um grupo de pessoas em torno de um jogo de tabuleiro num espaço fechado André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop
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André Carvalho, André Guedes, Tugba Karop

Manuela Fazenda está muito surpreendida com a atenção que, de repente, começou a ser dada à Comunal, a cooperativa que criou, com um grupo de amigos, a 1 de Novembro de 1974, em Árgea, perto de Torres Novas. “Foi preciso passarem mais de 40 anos…”.

A Comunal é o ponto de partida para a performance Nova Árgea, que André Guedes apresenta a partir desta quinta-feira e até sábado no ciclo Utopias do Teatro Maria Matos, em Lisboa. E no sábado, às 19h30, entre duas apresentações do espectáculo, haverá um debate entre o artista e alguns dos membros da cooperativa, Carlos Clara, Pedro Fazenda e Manuela Fazenda.

Feito inicialmente para ser apresentado no centro cultural Phakt no âmbito da bienal de arte contemporânea de Rennes, em 2012, Nova Árgea tem textos de Fiama Hasse Pais Brandão, Clara Batalha, do urbanista francês Gaston Bardet e do próprio André Guedes a partir de artigos sobre A Comunal tirados de jornais de 1975 e 1976, e como intérpretes (em diaporama) Tiago Barbosa, Antonia Buresi, Matthieu Ehrlacher, Elizabete Francisca, Vera Mantero e João Ferro Martins.

No centro do palco do Maria Matos, um objecto estranho – um “intruso temporário”, diz André Guedes – convida-nos a entrar nele por uma abertura oval. No interior, dois projectores e algumas cadeiras. Foi este o dispositivo criado pelo artista para responder ao espaço onde se encontrava em Rennes: um centro cultural ao qual se acedia atravessando um centro comercial.

O contraste faz-se pelo espaço e pela história encenada nos dois diaporamas – um grupo de pessoas em torno de um jogo de tabuleiro num espaço fechado e depois segurando peças em tamanho grande num espaço exterior. Uma forma de falar das questões do urbanismo, da escala mas também de uma comunidade, A Comunal. No exterior, actrizes lêem os textos e o público, se quiser, pode movimentar-se.

Mas não é apenas de André Guedes que surge a atenção ao projecto de 1974. Há também, conta Manuela, um historiador local que pretende estudar a cooperativa, cuja história terminou no início de 1977 – um fim ditado pela dificuldade de assegurar a sustentabilidade financeira do projecto, e de gerir algumas tensões internas que entretanto foram surgindo.

“Éramos muito jovens, não tínhamos maturidade suficiente para gerir esses conflitos da melhor forma”, recorda Manuela. Além disso, havia uma grande pressão exterior. A aventura da Comunal despertou tanta curiosidade que Árgea se tornou quase um local de peregrinação para gente vinda de todo o país e até de fora de Portugal. “Havia dias em que chegavam camionetas cheias de pessoas que queriam ver e ajudar.”

Enquanto isso, o núcleo inicial via juntarem-se novos membros e trabalhava nas relações com os habitantes locais. Ao primeiro terreno que lhes foi cedido somaram-se outras pequenas parcelas. “Nessa altura os terrenos estavam muito abandonados”, conta Manuela. “Fomos explicando a nossa ideia, que não era muito pretensiosa: cultivar a terra e garantir que as pessoas tinham todas os mesmos direitos.” Os que iam de Lisboa, como ela, que era arquitecta, “não tinham nenhuma ideia” sobre como se fazia agricultura, mas “as pessoas da aldeia começaram a aderir”.

Uma das coisas que, muitos anos depois, André Guedes acha particularmente interessante neste caso é que a ideia nasce ainda antes do 25 de Abril. “A Comunal encontra no processo revolucionário condições propícias para se desenvolver mas a ideia é anterior a isso”.

Outro ponto que André destaca é o facto de este não ser um projecto ligado a um partido, como aconteceu com muitos outros no período pós-revolução. Aliás, A Comunal não começou com ocupação de terras, dado que os primeiros terrenos foram cedidos. Isto levou a uma situação caricata: não havendo ocupação de terras não podia haver apoios do Estado. Manuela dá uma gargalhada ao recordar que, como precisavam desses subsídios, fizeram a certa altura uma “ocupação com o acordo do proprietário”.

Mas com o 25 de Novembro as coisas complicaram-se, houve uma rusga policial às instalações da cooperativa à procura de armas e isso criou alguma instabilidade. O mais complicado, contudo, era o facto de “a produção não chegar para as despesas”, reconhece Manuela, o que culminou na declaração de falência.

“Fomo-nos apercebendo de que a cooperativa não era viável, as pessoas foram tomando outros rumos." Ela própria acabou por ser convidada para trabalhar num dos GAT (Gabinetes de Apoio Técnico) que na altura davam apoio às Câmaras e ficou na região mesmo depois do fim d'A Comunal.

No entanto, e apesar de reconhecer o carácter utópico que rodeou A Comunal, nunca se tornou céptica. “A minha convicção é a de que aquele era o caminho certo. É um facto que na prática não resultou. As coisas naquele momento estavam rodeadas de uma certa utopia que às vezes era difícil pôr em prática. Mas continuo a acreditar que não é impossível.” Dá outra gargalhada. “Não sei se é a minha utopia particular, que não me abandonará.”

Uma certa candura

A utopia d'A Comunal partiu "de uma necessidade de construir algo”, diz André Guedes, explicando que é “esse esforço sempre renovado a cada geração e a cada utopia” que o atrai. É um tema que já trabalhou anteriormente, com o actor e encenador Miguel Loureiro, primeiro debruçando-se sobre a experiência da Comuna de Paris em 1871, com a peça como rebolar alegremente sobre um vazio Exterior, apresentada no Alkantara Festival em 2010.

O projecto continuou depois com Nova, Caledónia (2014) centrado no grupo de revolucionários da Comuna de Paris que são deportados para aquele território do Pacífico Sul, “lugar improvável para a implementação de um programa politicamente actuante ou relevante”. Nesse trabalho quiseram falar do “fim dos projectos comunitários de pendor bélico e romântico que são as revoluções”.

Curiosamente, ao mesmo tempo que o Maria Matos mostra Nova Árgea, no Pavilhão Branco do Museu da Cidade pode ser vista a exposição Prospecto. Princípio, Meio e Ultimação, na qual André se debruça sobre o universo das fábricas de tecidos da Covilhã para reflectir sobre o trabalho, os efeitos da crise, “a produtividade enquanto forma de realização pessoal, a vida em comuna e a ligação com o ócio”.

Há, diz, “uma certa candura” nos projectos utópicos e na forma como fracassam. Mas são experiências que vão acumulando ensinamentos para outros processos sociais. “Há sempre um património que passa de geração em geração a partir das conquistas mas também dos fracassos de cada um deles.”

“Para mim, como artista, como indivíduo, como cidadão, é importante esse passar de uma teoria, de uma vontade, à acção e à participação.” É uma forma de se questionar também a si próprio: “Seria eu capaz de me implicar num projecto como este? Há um lado romântico que todos os processos revolucionários têm, e um enorme capital simbólico, e isso existe como uma espécie de aura que os rodeia.”

É verdade que normalmente as utopias estão associadas ao fracasso – a Comunal não foi excepção. Mas, conclui André, é precisamente o fracasso que “faz com que a utopia permaneça num estado de latência, mantenha uma ideia do inacabado, do inalcançado”. Usamos o termo utopia, diz, mas podíamos falar de desejo, de algo que está por fazer, por acontecer, que existe em nós em potência.

Na performance Nova Árgea joga-se um jogo a que se chama Jogo elementar de reconfiguração espacial de acordo com a vivência orgânica de uma comunidade definida. “É um jogo especulativo, um exercício sem vencedores nem perdedores; apenas jogadores. Os lances resultam de uma preocupação em definir o espaço de acordo com as necessidades do grupo, sempre em transformação.”

Dele diz uma das mulheres cujas vozes ouvimos: “É isso. Este jogo representa uma ideia de mutação, de transformação. Através dele representamos o nosso desejo.” Utopia no espaço, em movimento, 40 anos depois d’A Comunal de Árgea. 

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