Pós-verdade e ciência nos EUA com o Sr. Donald Trump

A democracia enfrenta o risco do que hoje em dia se designa por políticas de pós-verdade alicerçadas na exploração da tendência para acreditar em afirmações que vão ao encontro das expetativas e estados de alma mas não traduzem factos.

Poder-se-ia esperar por 20 de janeiro de 2017 e pelos próximos meses para avaliar como irá o novo governo dos EUA gerir a ciência mas os anúncios e os presságios são já tantos que se tornou interessante refletir sobre o que se vai passar. Procurar antecipar é uma forma de prevenir e é isso que muitas organizações científicas dos EUA estão a fazer.

A democracia enfrenta o risco do que hoje em dia se designa por políticas de pós-verdade alicerçadas na exploração da tendência para acreditar em afirmações que vão ao encontro das expetativas e estados de alma mas não traduzem factos. O Oxford Dictionary, que designou a expressão "pós-verdade" como a palavra do ano de 2016, define-a como um adjetivo “relacionado com ou denotando circunstâncias em que os factos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”. Desde sempre que em política, tanto nas autocracias como nas democracias, os decisores omitem, manipulam ou negam a verdade e simultaneamente acusam os opositores de praticarem o mesmo tipo de comportamento. Na política de pós-verdade deixou de ser necessário exercer o “controlo da realidade” invocado por Orwell no seu livro 1984 porque se atingiu a situação sublime de as pessoas estarem disponíveis e algumas até ansiosas para negar a verdade. Basta saber apelar às suas emoções, ansiedades, preocupações e predisposições.

A expressão pós-verdade foi utilizada pela primeira vez pelo escritor americano Steve Tesich (1942-1996), nascido na Jugoslávia, num artigo publicado na revista Nation sobre o escândalo de Watergate, o caso Irão-Contras e a Primeira Guerra do Golfo. A acumulação de fracassos, dissimulações e mentiras propaladas pelo Governo dos EUA dessa época levou-o a escrever: “Passámos a identificar a verdade com as más notícias, e não queríamos mais más notícias, apesar de serem verdadeiras e vitais para a saúde da nação. Passámos a esperar que o nosso governo nos protegesse da verdade”. Mais adiante escreve: “De forma muito fundamental nós, como povo livre, decidimos livremente que queremos viver em algum mundo de pós-verdade”.

A atual política de pós-verdade não pretende nem precisa de contestar de forma frontal e sistemática a verdade, que perdura ciosamente protegida no que se considera serem algumas elites. O objetivo principal é explorar e reforçar os preconceitos que estruturam as queixas, as aspirações e a identidade de uma parte significativa do eleitorado, mas que não se baseiam em factos. Deste modo acentuam-se e dramatizam-se diferentes identidades e desenvolve-se a oposição entre “nós” e “eles”, na expectativa de que tal permita ganhar votos nas eleições e eventualmente o poder.

O fenómeno da pós-verdade é favorecido e amplificado pela multiplicidade praticamente ilimitada das fontes de informações e notícias através dos variados meios de comunicação social, da Internet a das redes sociais. Estes meios fervilham com notícias factuais, notícias adulteradas, rumores e notícias falsas, todas apresentadas com igual valor. Tal como a reprodução dos factos não constitui um valor protegido, a falsidade tornou-se praticamente impune. Uma notícia falsa, incompleta ou enviesada mas minimamente verosímil, e sobretudo capaz de agradar a um grupo identitário, ao ser veiculada pelas redes sociais afins adquire os atributos da verdade e muitos, perante a prova da sua falsidade ou distorção, recusam-se a reconhecê-las. O veículo da informação é neutro e o recetor é livre de lhe atribuir a credibilidade e a veracidade que entender. A credibilidade depende sobretudo da confiança que o recetor tem na fonte. Se a fonte estiver incluída no seu grupo identitário o conteúdo torna-se credível.

A pós-verdade não se manifesta apenas na política mas em todos os domínios da atividade humana. O relativismo ético permite que as sociedades modernas tolerem impunemente uma desonestidade casual implicando riscos limitados e controláveis mas que, em média, favorece manifestamente quem a pratica. As narrativas apresentadas no marketing e nos currículos pessoais, das empresas e das instituições frequentemente favorecem para além da verdade dos factos. Mas como a validade dos documentos é cada vez mais efémera o exagero dissipa-se rapidamente. O interlocutor já o suspeita e aplica um desconto. A prática da pós-verdade nas relações pessoais, profissionais e institucionais poderá criar vantagens imediatas de curto prazo mas a médio e longo prazo tem tendência a deteriorar essas relações, a quebrar a confiança e a solidariedade e consequentemente a solidez do edifício social.

No domínio da ciência a pós verdade manifesta-se através da negação de determinadas observações ou experiências e das teorias científicas que as interpretam e nos permitem fazer previsões. É um processo altamente seletivo que em algumas situações extremas contemporâneas equivale a estabelecer uma distinção entre uma “boa ciência” e uma “má ciência”. Estas duas categorias correspondem àquilo que Robert Walker, um dos conselheiros para a ciência do Sr. Donald Trump na fase de transição para a presidência dos EUA, ex-presidente da Comissão para a Ciência da Câmara dos Representantes, caracterizou numa entrevista ao jornal Guardian (23 de novembro de 2016): “As decisões do Sr. Trump irão basear-se em ciência sólida e não em ciência politizada”.

São exemplos da boa ciência ou da ciência sólida as ciências do espaço que permitem a exploração e a instalação de colónias humanas através do sistema solar, a ciência nuclear que permite aperfeiçoar e construir novas armas nucleares adaptadas à evolução das necessidades e a biologia, incluindo a biologia sintética, especialmente quando se dedica ao prolongamento da vida humana para além dos limites atuais e em boas condições de saúde. O exemplo mais emblemático de má ciência ou ciência politizada é a ciência das alterações climáticas. Porém há outros, como as ciências sociais quando, por exemplo, estabelecem uma relação de causa-efeito entre a permissividade das leis de porte de armas de fogo e a mortalidade resultante do uso dessas armas.

Uma forma mais discreta de mencionar esta diferença “entre ciências” é reconhecer que as políticas públicas selecionam e usam uma parte dos resultados e recomendações da ciência e ignoram a outra parte. Como afirma Rush D. Holt, um dos diretores executivos da American Association for the Advancement of Science (AAAS) num editorial publicado na revista Science em 17 de novembro de 2016: “Nas décadas mais recentes há uma tendência preocupante no governo dos EUA para as asserções ideológicas afastarem a evidência”.

A embaraçosa aberração que consiste em dividir a ciência, como se não resultasse toda da aplicação do método científico, é temperada pela afirmação de que não existe consenso entre cientistas. De acordo com um relatório de 2016 do Pew Research Center sobre as políticas do clima nos EUA, apenas 27% dos americanos afirmam que existe um grande consenso entre os cientistas sobre as alterações climáticas e a sua origem antropogénica. Porém, investigação publicada precisamente sobre este assunto conclui que 97% dos cientistas do clima partilham o consenso de que o aquecimento global observado é antropogénico (John Cook, Environmental Research Letters, 2016).

Mais surpreendente é o facto de 45% de americanos identificados como republicanos conservadores afirmarem terem pouca ou nenhuma confiança nos cientistas do clima, enquanto apenas 6% de americanos identificados como democratas liberais têm a mesma opinião. Só 15% dos do primeiro grupo afirmam ter “muita confiança” nos cientistas do clima. A surpresa resulta de que a ciência e os cientistas são geralmente respeitados e reconhecidos nos EUA como tendo dado uma contribuição fundamental para a riqueza e o poder do país. Mas as alterações climáticas afrontam aspetos essenciais do modelo americano e da identidade do país. Como é possível que a exploração, o comércio e o uso dos combustíveis fósseis, um dos principais pilares do poder e da hegemonia mundial dos EUA, possam ter efeitos gravosos para toda a humanidade?

Neste cenário, que se aplica a todo o mundo mas especialmente nos EUA e aos países cuja economia é muito dependente da produção e exportação de combustíveis fósseis, torna-se compreensível que as alterações climáticas gerem respostas diversas que tendem a alinhar-se com opiniões de natureza política. Regra geral os partidos próximos do neoliberalismo consideram que a mitigação das alterações climáticas contraria as suas doutrinas políticas por exigir uma maior intervenção regulatória do governo na área da energia, capaz de conduzir a uma mudança do paradigma energético. Esta mudança tem a grande desvantagem de prejudicar a poderosa indústria dos combustíveis fósseis, especialmente do petróleo e do carvão, que tem fortes ligações ao neoliberalismo.

A partir desta postura ideológica combate-se e desacredita-se o conceito de alterações climáticas antropogénicas na opinião pública. Por um lado, salienta-se que a mitigação prejudica a economia e cria desemprego, e na vertente da ciência fomenta-se a quebra do consenso científico por vários meios incluindo o financiamento de cientistas dispostos a contrariá-lo publicamente. Nos EUA este processo faz-se em geral através de think tanks financiados discretamente ou sub-repticiamente por diversos tipos de organizações, tais como fundações politicamente conservadoras (Robert Brulle, Climatic Change, 2014).

Ao incentivar o ceticismo sobre a fundamentação científica das alterações climáticas antropogénicas a opinião pública torna-se recetiva ao exercício da política da pós-verdade. Um exemplo extremo é o tweet de Donald Trump de 6 de novembro de 2012 em que afirma: “O conceito de aquecimento global foi criado pelos e para os chineses de modo a tornar não-competitiva a fabricação de produtos nos EUA”. Já como candidato à presidência dos EUA, Trump, confrontado com a sua surpreendente afirmação num debate com Hillary Clinton em 26 de setembro de 2016, negou repetidamente ter afirmado o que ficou registado no seu tweet de 2012, uma atitude típica dos praticantes da política de pós-verdade quando os prejuízos associados aos riscos das asserções falsas se tornam elevados. Semelhante à criança que nega ter mentido.

Não é possível concluir que a criação de um clima propício ao sucesso da pós-verdade em ciência seja um exercício de honestidade intelectual. Pelo contrário trata-se de um processo sistemático de manter a ignorância, confundir e enganar as pessoas. O progresso da ciência é incompatível com a desonestidade intelectual. Há evidentemente casos de fraude em investigação científica, mas mais cedo ou mais tarde são descobertos e denunciados por outros cientistas devido ao forte escrutínio no sistema de avaliação por pares dos artigos submetidos para publicação e à intensa competição entre cientistas. As alterações climáticas antropogénicas estão solidamente fundamentadas nas leis da física cuja descoberta resultou de um exercício muito exigente de honestidade intelectual. Friedrich Nietzsche (1844-1900) referiu-se a ele ao escrever em 1882 no seu livro A Ciência Alegre: “E portanto, vida longa para a física! E mais vida longa ainda para aquilo que nos impele para ela – a nossa honestidade!”.

As consequências das atuais políticas de pós-verdade para a democracia não são boas. A pós-verdade explora a credulidade, a ignorância, o ressentimento, o antagonismo e o ódio. Se as “verdades” que se contradizem são cada vez mais frequentes gera-se uma sociedade dividida em grupos identitários que se antagonizam, aumentando o risco do confronto e do autoritarismo. A democracia baseia-se na convicção de que existe uma linguagem comum a todos, solidária com o uso da razão e do conhecimento. As opiniões políticas diversas são perfeitamente naturais, legítimas e benéficas para a democracia mas é necessário que comuniquem e dialoguem entre si no mesmo quadro de valores e princípios morais e éticos. Na transição que, ao longo da história, algumas democracias sofreram para regimes autocráticos é possível identificar uma intensificação das políticas de pós-verdade bem como o seu crescente sucesso. 

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