Uma aventura intelectual

Vida Activa é um filme disponível para entrar no pensamento de Hannah Arendt, reflecti-lo, discuti-lo.

Um filme duro que faz do pensamento “acção”
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Hannah Arendt volta aos ecrãs, poucos anos depois do biopic que a alemã Margarethe von Trotta lhe dedicou. Agora é um documentário, Vida Activa: o Espírito de Hannah Arendt, assinado pela israelita Ada Ushpiz, e um filme que não enverga o seu título em vão: é mesmo o “espírito” de Hannah Arendt, e o pensamento produzido por ele, que o ocupa o primeiro plano. Ushpiz não ignora a biografia, nem o podia fazer quando a biografia de Arendt se cruza de maneira tão forte com a História do século XX, e porque o seu pensamento é indissociável de uma biografia inscrita nessa História. Mas muito mais do que para contar a vida de Hannah Arendt o filme está sobretudo disponível, e de maneira densa, para entrar no seu pensamento, reflecti-lo, discuti-lo (entre os deponentes há tantos admiradores como críticos), criar-lhe uma ressonância que ecoa, muito além dos livros de história, no tempo presente, em especial nas considerações da autora sobre as origens e persistências do totalitarismo em sociedades teoricamente democráticas, ou sobre a ideologia (qualquer uma) enquanto substituto fantasioso de uma análise da realidade.

Mas Vida Activa é um filme, e um filme (normalmente) precisa de personagens. Ushpiz, no que é um dos seus principais méritos, tem o condão de ganhar Arendt como personagem – diríamos que isso acontece na cena em que monta imagens de arquivo com a participação dela num programa da televisão da Alemanha Federal, em finais dos anos 1960, e o entrevistador aborda a polémica criada pela publicação da sua célebre reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém. A maneira como ele se defende, os grandes óculos, o cabelo meio desgrenhado, o cigarro sempre na ponta dos dedos, inclui uma grande frase: “eu ainda consigo rir”. Essa inesperada convocação do riso (a propósito do lado clownesco de Eichmann, e daquilo a que ela chama as “patetices” de algumas das suas declarações) faz aparecer uma personagem inteira, nesse momento Arendt aparece aos nossos olhos não como entidade teórica semi-abstracta mas, simplesmente, como pessoa. Vida Activa ganha o “espírito” sem perder o “corpo”, e sem perder a “voz” – mesmo quando “voz” é a de uma narradora que lê textos de Arendt, sobre a sua infância, a sua juventude universitária (a relação com Heidegger), sobre o tempo do exílio americano e da relação geograficamente distante com os seus mestres e amigos (como Jaspers).

Claro que boa parte do filme é passada a discutir as suas famigeradas conclusões sobre a “banalidade do mal” e as múltiplas interpretações, algumas ferozmente agressivas, que essa ideia gerou. Aí, o mérito de Ushpiz, até pelo sintético rigor dos depoimentos que inclui (não há um que seja “palha”), está em propor menos uma interpretação definitiva do conceito e preocupar-se mais em fornecer o contexto histórico por detrás das interpretações e das reacções: o debate sobre a “excepcionalidade” e “monstruosidade” do nazismo versus a sua aceitação como produto, não importa quão perverso, da história ideológica, ou a possibilidade de a “banalidade do mal” implicar, consequentemente, a “banalização” do sofrimento por ele causado. Neste como noutros temas, a pluralidade das intervenções garante que Vida Activa tenha sobre o pensamento de Arendt um olhar em “mosaico”, e seja uma tentativa de chegar à sua compreensão através de uma lógica de tensão e de atrito. Também por isso, é um filme duro, saudavelmente duro, que faz do pensamento “acção”. Podíamos chamar-lhe um filme de aventuras intelectuais.

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