Governo avança com Registo Oncológico contra parecer da Protecção de Dados

Comissão diz que está em causa a privacidade dos doentes e informação com valor económico para bancos e seguradoras. Governo lembra que o Parlamento é soberano no processo legislativo.

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Registo Nacional Oncológico ficará sediado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa GONCALO PORTUGUêS

O Governo decidiu avançar com o Registo Nacional Oncológico (RON) apesar de a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) ter dado parecer negativo à proposta. A entidade voltou a levantar fortes objecções à proposta de criação daquele registo, por considerar que a proposta de lei do Governo que cria e regula a base de dados que permitirá traçar o retrato da realidade oncológica em Portugal continua a não salvaguardar a privacidade dos doentes. 

Num parecer emitido no passado dia 20 - o segundo sobre esta matéria - a CNPD aconselha o Governo a expurgar do registo nacional o número de utente e o número do processo clínico dos doentes. São dois dados que "não só revestem um forte carácter sensível como permitem a identificação dos titulares", alerta aquela comissão, reiterando os alertas quanto ao "risco muito elevado" de discriminação e de exposição da privacidade dos doentes. 

O Governo, porém, vem agora lembrar que "o parecer da CNPD é obviamente importante, mas que a Assembleia da República é soberana no processo legislativo". A resposta do Ministério da Saúde, enviada esta segunda-feira ao PÚBLICO, surge já depois de perante o primeiro parecer da CNDP, o Governo ter acatado a recomendação de não introduzir nem o nome nem o mês de nascimento dos doentes no registo.

Agora a proposta de lei vai mesmo seguir o seu caminho até ao Parlamento, sem acolher a sugestão da CNPD que, para mitigar o risco de identificação dos titulares dos dados, sugere o recurso à aplicação de um hash criptográfico. Este permitiria a introdução dos dados ao mesmo tempo que possibilitaria a sua protecção, impedindo a revelação imediata das referências identificativos dos doentes que padecem ou padeceram de cancro.

"Trata-se de um registo que é de âmbito nacional, mas sediado no Instituto Português de Oncologia de Lisboa, ou seja, numa instituição com reconhecida idoneidade", reagiu ao PÚBLICO o Ministério da Saúde, para lembrar que a proposta de criação do RON foi precedida de estudos rigorosos.

De resto, já existem três registos oncológicos regionais que desde 1988 contêm a maior parte desta informação."Trata-se agora de proceder finalmente à sua integração, algo requerido por todos os peritos nacionais e internacionais, como fundamental para o Serviço Nacional de Saúde", acrescenta o ministério, para sublinhar que o RON vai permitir reunir informação precisa "sobre os tipos de neoplasias existentes em Portugal, em que locais, que populações de risco, qual a efectividade dos rastreios, qual o impacto dos novos fármacos" e que abordagem terapêutica apresenta melhores resultados. Trata-se, em suma, de "uma informação crítica para a melhoria no tratamento dos tumores em Portugal".

Comissão levanta “obstáculos excessivos"

Na mesma linha, o coordenador do Programa Nacional das Doenças Oncológicas, Nuno Miranda, considerou que a CNPD está a levantar “obstáculos excessivos e desproporcionais”. “Não se trata de um registo aberto e acessível ao público em geral, pelo que não me parece que faça sentido esta quantidade de obstáculos face a um registo que é extremamente necessário para sabermos o que se passa em termos de realidade oncológica em Portugal”, reagiu ao PÚBLICO, sublinhando que esta proposta “é em tudo semelhante ao que já vigora em muitos outros países" e "segue as recomendações da Organização Mundial de Saúde”.

Para este especialista, que calcula existirem em Portugal cerca de 400 mil pessoas que escaparam à doença oncológica, o RON devia, aliás, ir mais longe do que o Governo está agora a querer pôr à votação na Assembleia da República, fazendo constar não só o ano mas o mês do nascimento. “No caso de uma criança, é muito diferente ter um mês ou um ano de idade. E, mesmo para calcular incidências, era importante ter a data de nascimento”, preconiza, lembrando que a maioria das bases de dados semelhantes são nominais, ou seja, contêm a identificação do nome do doente.

A inexistência de um estudo de impacto deste registo central, do qual pudessem resultar soluções tecnológicas capazes de salvaguardar a identidade dos doentes oncológicos sem afectar a finalidade do registo, é uma das falhas que a CNPD aponta e que já constava, de resto, do primeiro parecer desta autoridade.

"Informação com valor económico"

Para a CNPD, o risco de exposição de privacidade e de discriminação é "tanto maior quanto esta é, de facto, informação com especial valor económico”. E o pior é que este tipo de informação é, ainda segundo aquela entidade, “potenciador de juízos discriminatórios, entre outros, no contexto laboral, no âmbito das relações contratuais (designadamente aquelas em que intervenham entidades bancárias e seguradoras) e também no domínio das relações sociais”. No parecer assinado pela presidente da CNPD, Filipa Calvão, sublinha-se que a discriminação “pode afectar não apenas os titulares dos dados mas também, no caso de cancros com incidência genética, os seus familiares”.

A este propósito, Nuno Miranda diz não ter conhecimento “de nenhuma seguradora que tenha acedido a dados de registos oncológicos”. De resto, e como lembra o ministério, "é possível na actual plataforma registar todos os acessos e monitorizar os mesmos", sendo que as objecções levantadas pela CNPD poder-se-iam também levantar relativamente a todos os registos de patologia e mesmo em relação às certidões de óbito. “Há sempre riscos inerentes a termos registos de saúde mas também há riscos inerentes ao facto de não os termos”, resume Nuno Miranda, para insistir na importância desta base de dados e assegurar a equidade nos tratamentos. 

 Além de agregar e uniformizar os dados dos registos oncológicos regionais, a base nacional somará os novos casos de cancro (cujo registo terá de ser feito até nove meses a contar do diagnóstico) e a posterior actualização anual do estádio da doença, das terapêuticas usadas e do estado vital do doente. Os dados são mantidos no anonimato até 15 anos após a morte do doente. 

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