Para uma abordagem política dos direitos humanos

A concepção política dos Direitos Humanos implica salvaguardar os princípios pelos quais se regem face à ameaça do neoliberalismo mas, também, perante as investidas de um falso republicanismo soberanista, assente num catecismo pseudo-laico.

Considerados como uma das grandes conquistas da humanidade, os Direitos Humanos não escaparam, porém, desde a sua proclamação, nos finais do século XVIII, a uma dupla contestação. Para simplificar, diríamos que os Direitos Humanos foram contestados à direita e contestados à esquerda.

Foram contestados à direita ao procurarem a sua fundamentação no princípio da universalidade e do contracto o que contribuiria, segundo os seus detractores, para dissolver as identidades culturais e nacionais. Para por em causa o direito natural, o direito inato de carácter algo divinatório.

Foram contestados à esquerda ao afirmarem a individualidade dos direitos o que, na opinião dos seus críticos, situados nesta área, valorizaria uma dimensão subjectiva em detrimento das dimensões sociais e colectivas. Abririam portas ao abandono de um projecto de autonomia progressista, democrática e social.

De Auguste Compte a Carl Shmitt, de Edmund Burke a Joseph de Maistre, passando por Karl Marx, esta dupla contestação atravessa toda a modernidade.

Mas a crise dos modelos de representação política e o alargamento dos confrontos à escala mundial, características do dealbar do século XXI, vieram dar actualidade maior ao discurso dos Direitos Humanos aprofundando, ainda mais, as clivagens anteriormente referidas.

Assim, a desconfiança ou o desencantamento relativamente aos partidos políticos, julgados incapazes de resolver os grandes conflitos que dilaceram a humanidade ou, mesmo, julgados deles coniventes, traduziu-se na multiplicação de grupos ou de organizações que, de uma maneira mais ou menos espontânea, mais ou menos organizada intervêm na esfera pública, ou para exigir direitos a que se julgam com direito ou para exigir direitos para terceiros, isto é, para fazer com que tenham acesso a direitos aqueles que desses direitos estão privados. Diríamos que, de um certo ponto de vista, se assiste a um incremento de acções que se reclamam da defesa e promoção dos Direitos Humanos.

Só que, em contrapartida, assistimos também à expansão de movimentos de extrema-direita que preconizam o regresso ao conceito de Nação com todas as consequências daí provenientes. Nomeadamente a limitação de acesso aos direitos a quem partilha uma cultura e uma história comum, excluindo, marginalizando, portanto, os restantes. Movimentos de extrema-direita que fazem do combate ao princípio da universalidade dos direitos, o núcleo da sua acção política.

E assistimos, ainda, à progressão de um discurso derrotista, por parte de uma esquerda mais esquerda que, face ao desfasamento entre toda a regulamentação internacional e a prática que se vive em cada momento e em cada lugar – atentados ao Estado de direito na Hungria, hecatombe no Iraque e na Síria, naufrágios em massa no Mediterrâneo, crianças e mais crianças abandonadas à sua sorte em países desenvolvidos como a França como consta de um relatório do Conselho da Europa de Março de 2015 -  associa Direitos Humanos à expressão hipócrita de um humanismo abstracto que serviria, apenas, para dissimular formas de dominação ideológica, para consolidar hierarquias políticas e sociais.

Perante esta controvérsia a questão que se põe é a seguinte: fará sentido falar-se, hoje, de Direitos Humanos? E a resposta é inequívoca. Sim, faz sentido.

Primeiro porque a actual irrupção de pulsões xenófobas, nacionalistas – essa patologia da cidadania, para falar como Hannah Arendt - faz temer o pior no que respeita ao reconhecimento da dignidade humana.

Em segundo lugar, porque as eventuais derivas do discurso sobre os Direitos Humanos podem ser vistas como contingências históricas. Dito de outra forma: as estratégias perversas de exclusão, de discriminação ou de manipulação podem remeter para a realidade histórica, nua e crua, sem que isso ponha em causa o próprio princípio dos Direitos Humanos sob o qual se acobertam. Acresce que, se o discurso dos Direitos Humanos, quando instrumentalizado nesse sentido, é susceptível de contribuir para a manutenção ou o reforço das hierarquias não é menos verdade que, esse mesmo discurso, é igualmente, susceptível de funcionar como fonte de insurgência e de reorganização igualitária.

Em terceiro lugar, porque a Convenção de Genebra de 1949, aplicada a conflitos armados mas não a situações de violência, impõe um “jus in bello” mas são mudas quanto ao “jus ad bellum” e a Convenção de Genebra de 1951, relativa ao estatuto de refugiado, completada pelo Protocolo de 1966, não abrange os que fogem de guerras estrangeiras, de situações de insegurança ou de instabilidade política.

Em quarto lugar, porque existem muitas outras formas de marginalidade e de vulnerabilidade social que impedem os sujeitos de afirmarem e/ou de reivindicarem a sua autonomia enquanto cidadãos. Wieviorka designa-os por sujeitos “socialmente descartáveis”.

Em quinto e último lugar, porque, frequentemente, a proclamação internacional de direitos não é mais do que um mero exercício de retórica.

Em La Volonté de Savoir, obra publicada em 1976, Michel Foucault descreveu a actividade jurídica dos séculos XIX e XX como um fenómeno de superstrutura destinado, e cito, a “tornar aceitável um poder essencialmente normalizador”. Alguns anos mais tarde, num texto inserido em Dits e Écrits, compilação de artigos, entrevistas e lições, publicada após a sua morte, o mesmo autor revia esta sua posição admitindo que a época contemporânea seria marcada por um conflito entre um direito, enquanto factor de normalização social, e um direito enquanto ideal de existência. Daí o seu apelo, em Conferências que realizou no final da sua vida, à instituição de um novo direito, de carácter anti-disciplinar. De um “direito relacional” que impedisse toda a espécie de bloqueamentos tentados por instituições relacionalmente empobrecedoras. Não será ousadia demasiada descortinar, nessa proposta de um “direito relacional”, um reconhecimento dos fundamentos dos Direitos Humanos.

 Afirmada a pertinência dos Direitos Humanos no contexto actual, importa, então, enquadrá-los numa perspectiva política, o que obriga a explicitar claramente:

A quem se dirigem os Direitos Humanos?

Que modelo de sociedade lhe estará subjacente?

Comecemos pela primeira interrogação: a quem se dirigem os Direitos Humanos, ou melhor, quais são os sujeitos implicados na luta pela promoção e protecção dos Direitos Humanos?

Analisemos, numa aproximação à resposta, a situação do recluso.

A condição de reclusão por um período previamente determinado, como resposta institucional a um delito socialmente reconhecido como tal, não constitui, por si só, motivo que justifique a invocação dos Direitos Humanos. A liberdade que, por convenção, é retirada ao infractor não atenta contra os Direitos Humanos. É verdade que o recluso é, também ele, sujeito de direitos. Mas não do direito à liberdade que lhe foi temporalmente retirada por uma decisão judicial socialmente legitimada.

Recorro, então, a Hannah Arendt e a um dos seus livros mais amplamente divulgados – As Origens do Totalitarismo -  para dizer que: estão englobados no processo de promoção e protecção dos Direitos Humanos todos aqueles, e cito, QUE TÊM O DIREITO A TER DIREITOS.

É este conceito DO DIREITO A TER DIREITOS que retira aos Direitos Humanos aquilo que poderíamos considerar como sendo o «Paradoxo dos Direitos Humanos».

E em que consiste esse paradoxo? Consiste em verificar que um ser humano que não é senão um ser humano, que não pode invocar outros direitos que não sejam o de ser humano, não tem, na realidade, nenhum direito e não beneficia de qualquer protecção, pese embora toda a legislação adoptada a este respeito. Porquê?

Porque, frequentemente se confunde direitos humanos com direito à protecção de nacionais.

E é essa confusão, entre gozo de direitos e pertença a uma comunidade nacional, que toda e qualquer acção, inscrita na defesa e promoção dos Direitos Humanos, deverá combater.

Os Direitos Humanos aplicam-se portanto, e permitam-me que cite, uma vez mais, Hannah Arendt, a «cidadãos livres» e não a supostos “seres naturais”. O Direito a ter direitos é o direito à inclusão política. É o direito a ocupar um lugar significativo num Mundo entendido, não no sentido de uma colectividade nacional específica, mas no sentido de uma comunidade dinâmica, ou seja, de uma comunidade cujos membros se reconhecem reciprocamente como iguais em direitos e tecem, entre si, relações parciais, múltiplas e marcadas por uma tensão constante.

Abro um parêntesis para sublinhar este conceito de “comunidade dinâmica”. Comunidade dinâmica, porque exclui qualquer vertente comunitarista ligada à ideia de uma comunidade identitária, mítica e fantasmagórica. À ideia de uma cultura única e autêntica, como resultado de tradições particulares.

Não, no conceito de Arendt não cabe esse conceito de identidade nacional nem de cultura única. Nem cabe, tão pouco, o conceito de cultura autêntica. Arendt defende, sim, um conceito cosmopolita de cultura. Propõe a construção de um universal cosmopolita um pouco à imagem da proposta de cosmopolitismo avançada por Kant no seu «Projecto de paz perpétua». Um universal despido da “ilusão arcaica” denunciada por Lévi-Strauss, segundo a qual as outras culturas não seriam mais do que realizações imperfeitas e inacabadas da nossa. Como se existisse um único caminho que todas as culturas devessem seguir. E nos competisse, a nós, ajudá-las a percorrer esse caminho. Para seu bem. Mesmo que à força.

Num artigo intitulado Qual é o sujeito dos direitos humanos?, Jacques Rancière encontra uma fórmula engenhosa para definir Direitos Humanos e identificar os respectivos sujeitos. “Direitos humanos, diz ele, são os direitos daqueles que não têm os direitos a que têm direito e que têm os direitos que não têm”. Rancière explica melhor o sentido da expressão, dando como exemplo a luta das mulheres durante a Revolução francesa. Com essa luta, elas mostraram, simultaneamente, que estavam, efectivamente, privadas dos direitos que, no entanto, lhes eram formalmente reconhecidos pela Declaração dos Direitos Humanos e que tinham, graças à sua própria acção os direitos que a Constituição afinal lhes vedava.   

Fixemo-nos, agora, na segunda interrogação: qual o modelo de sociedade que lhes está subjacente?

Filósofos como Etienne Balibar e Jacques Rancière, que, embora segundo abordagens diferentes, têm colocado a temática dos Direitos Humanos no cerne da sua reflexão, associam-nos a um modelo de democracia entendida como um campo de relações de força em confrontação permanente. Um campo de lutas através das quais se deslocam, constantemente, os limites do público e do privado. Através das quais se modificam e se reinventam identidades políticas. Através das quais se desencadeiam processos de recomposição social. Se desalojam elites, ou auto designadas como tal.

Um modelo de democracia que afasta qualquer hipótese de reconciliação final. Porque sempre inacabada. Porque sempre aberta à emergência de outros processos democráticos. Porque assente numa ordem social em busca constante de uma igualdade nunca atingível em termos absolutos. Porque aberta a novas reivindicações. Aliás, é, precisamente, na contestação ou na reivindicação de novos direitos, de novas formas de inclusão e de formas inéditas de autonomia, por parte daqueles que estão ou se consideram excluídos dos benefícios da democracia, que esta, a democracia, encontra o seu verdadeiro motor.

Terminaria esta tentativa de abordagem política dos Direitos Humanos com a enunciação de alguns conceitos que me parecem primordiais e a chamada de atenção para alguns equívocos que urge evitar.

Uma concepção política dos Direitos Humanos, recusa qualquer demarcação rígida entre os direitos do cidadão – que seriam os direitos que decorrem de acções colectivas – e os direitos do homem – que seriam os direitos do indivíduo unicamente virado para a defesa dos seus próprios interesses.

É interessante notar que tanto Marx como Arendt nos convidam a pensar esta relação entre o homem e o cidadão como uma unidade dialéctica segundo a qual as duas entidades – o homem e o cidadão - não são independentes nem pressupõem a inclusão ou a absorção de uma pela outra. Com uma diferença, porém. É que, enquanto Marx pensa superar a relação de tensão entre as duas entidades na unidade superior de uma sociedade sem classes, Arendt vê, nessa relação de tensão, a própria condição da política. Ou seja, para Hannah Arendt, a política não anula a relação de tensão entre o homem e o cidadão. Antes pelo contrário, a política vive dessa relação de tensão entre o homem e o cidadão.

Os Direitos Humanos não remetem para uma visão caritativa nem constituem, para citar Claude Lefort, um “santuário da moral”. É necessário, por isso, distinguir entre uma “política dos Direitos Humanos” e uma “política humanitária” cujos contornos burocráticos e paternalistas são por demais conhecidos.

Não significa isto que se deva desconsiderar a acção dos benfeitores, dos voluntários que trabalham, dia-a-dia, para fornecer víveres e garantir as condições mínimas de existência a legiões de deserdados. Com efeito, a preocupação em evitar todas as formas de vitimização e de compaixão anestesiante não deve relegar para segundo plano, deve, antes, valorizar os resultados concretos obtidos por esses benfeitores, por esses voluntários. Desde que a acção por eles empreendida, insista-se, contribua para que cada indivíduo se pense enquanto sujeito autónomo e portador do direito a ter direitos.

A igualdade não é oferecida. Ela é o produto da acção humana, da negociação, da luta, do compromisso, da derrota, da vitória de todos os que, inicialmente excluídos das definições legais dos direitos – escravos, mulheres, pobres, etc – acederam à cidadania reclamando os direitos que não tinham.

Aceitando a distinção feita por Hannah Arendt entre Nação – uma sociedade fechada à qual se pertence pelo direito de sangue – e Estado – uma sociedade aberta em que a ordem legal é extensível a todos os que vivem no território, independentemente da respectiva nacionalidade – diríamos que a luta pelos Direitos Humanos se desenvolve, hoje, no contexto do Estado. Escreve, a este propósito, Pierre Rosanvallon: “pretender destruir a forma de Estado, em nome da força activa das massas seria, no estado actual das coisas, fazer o jogo do neoliberalismo e pôr de lado a ambição de realizar uma sociedade mais justa”.

A contestação pela contestação e o dissenso pelo dissenso não definem o espaço da acção política. Que as lutas pelos direitos assumam uma dimensão colectiva enriquecedora do “tecido relacional” das nossas sociedades segundo vias à partida imprevisíveis, é uma coisa. Concluir que só contam as reivindicações, minimizando os adquiridos legais assim como as formas institucionais que deles resultam é outra coisa. E bem diferente. Que urge rejeitar, denunciar.

Em suma. Uma abordagem política dos Direitos Humanos passa pela recusa da alternativa entre fundamentalismo nos direitos a reivindicar, e distanciamento céptico relativamente a esses mesmos direitos.

Contra as posições fundamentalistas e nihilistas, invoque-se o gradualismo da luta pelos direitos que se inscreve num processo histórico determinado. Face a governos determinados e no âmbito de relações de força determinadas. Os seus efeitos práticos não serão sempre, portanto, os inicialmente almejados.

Contra o distanciamento céptico oponha-se o papel crítico desempenhado por instituições públicas que não devem ser medidas pela mesma bitola e por organizações da sociedade civil apostadas em gerar modificações profundas no laço social. Insista-se, por outro lado, na capacidade democrática de inventar novos modelos, novas formas de participação.

Uma concepção política dos Direitos Humanos implica salvaguardar os princípios pelos quais estes se regem face à ameaça de um neoliberalismo crescente mas, também, face às investidas de um falso republicanismo soberanista, assente num catecismo pseudo-laico e, sobretudo, pronto a acomodar, a justificar outras formas de exclusão.

Terminamos com Habermas dizendo que, trilhando embora caminhos difíceis, a luta pelos direitos Humanos está carregada da “explosividade política de uma utopia concreta”.

 

 

 

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