O fim de um mundo

Um retrato da grande feira de vaidades do mundo centro europeu imperial, antes da sua queda anunciada: A História da 1002ª Noite, de Joseph Roth.

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Um dos grandes escritores da Europa Central nas primeiras décadas do século passado: Joseph Roth

Joseph Roth (1894-1939), um dos grandes escritores da Europa Central nas primeiras décadas do século passado, nasceu no império austro-húngaro, em Brody (actual Lviv, na Ucrânia). Era um ostjuden, um judeu do Leste, mal visto nos círculos culturais vienenses judeus, e começou a sua carreira nas letras como jornalista, voluntário no exército, durante a primeira guerra mundial, assistindo de perto à queda anunciada do império. Em 1920 mudou-se para Berlim, onde começa a escrever nos mais importantes jornais alemães, e torna-se num cronista da República de Weimar; são os tempos que precedem a ascensão do Nazismo. Anos mais tarde, vai viver para Paris, onde continua a ganhar a vida como jornalista, e não tornará a residir em Berlim. Escreveu centenas de artigos e reportagens que retratam uma Europa convulsa à beira da guerra.

É já em Paris que se começa a dedicar com mais afinco à escrita de ficção, abandonando um pouco o seu interesse no retrato dos dias que então corriam, e dirigindo-o para tempos passados, sobretudo os da queda do império austro-húngaro. É por esses anos que escreve e publica a sua obra-prima, A Marcha Radetzky, a crónica do declínio da família Trotta que acompanha os últimos dias do império dos Habsburgo. Escreve ainda alguns livros de ficção, e outros de ensaio sobre a vida, os hábitos e as migrações dos judeus de Leste (Os Judeus Errantes, Sistema Solar, 2013).

É neste seu interesse que se insere o seu último romance, agora pela primeira vez traduzido para português, A História da 1002ª Noite: algures na Primavera de um ano do século XIX, o Xá da Pérsia, aconselhado pelo chefe dos eunucos, e para afastar a melancolia que o tolhe, viaja para ‘terras exóticas’ do Ocidente, para a cidade de Viena, capital do império austro-húngaro. Num Joseph Roth  honra avista a bela condessa Heléne W., defensora dos direitos das mulheres e com uma personalidade forte, e decide que tem de passar uma noite com ela. As autoridades ficam encarregues de tratar do assunto, pois o poderoso Xá “não estava acostumado a reprimir um capricho, quanto mais um desejo”, e a forma que encontram é entregar-lhe uma sósia da condessa sem que ele se aperceba que não se trata da mesma pessoa. O Xá, que parecia ter grandes expectactivas sobre as artes amorosas e eróticas do Ocidente, pelo que antes observara, acaba quase desiludido. “Sentia-se ofendido pelo Ocidente. Não cumprira nada do que prometera. Uma mágoa profunda propagou-se sobre o seu rosto suave e amarelado e, por um segundo, o seu rosto pareceu envelhecido, apesar dos joviais pêlos pretos e brilhantes da sua barba.”

Em A História da 1002ª Noite, Joseph Roth faz um retrato da grande feira de vaidades do mundo centro europeu imperial, sendo a personagem do Xá da Pérsia quase uma espécie de o último dos Trotta, a personagem central de A Marcha Radetzky. Neste romance, as personagens parecem desfilar numa parada de cavalos e cavaleiros, na feira vienense do Prater, ora a trote ora quase a galope, sem esquecer os habilidosos números de escola equestre; é mais uma vez uma crónica admirável, ainda que ficcionada, sobre o declínio de uma concepção de vida, e dos seus valores, que décadas depois a primeira guerra mundial acabará por enterrar de uma vez, dando-lhe a devida sepultura por há muito se encontrar ferida de morte. Roth disseca neste romance todas as classes sociais do império, desde a aristocracia inútil, que vive completamente afastada da realidade, até ao povo inculto e ignorante que apenas se interessa por sugar a qualquer custo dinheiro aos ricos, e passando também pelos banqueiros, pelos burgueses, pelos polícias e militares sempre ao serviço do poder. A noite número 1002 é a noite que se segue aos sonhos das 1001 noites, ao acordar, ao retorno do Xá ao seu mundo, o fim de uma época, o crepúsculo de um mundo.

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