A melancolia de esquerda

Um equívoco muito difundido nos últimos dias consistiu em chamar “romantismo político” - seja tal designação indulgente ou traga o público opróbrio – às manifestações de empatia para com a figura de Fidel Castro (e uso aqui a palavra “empatia” com o sentido que ela tem enquanto atitude historiográfica). A ideia de romantismo político designa outra coisa completamente diferente, implica uma outra história e outra genealogia. O romantismo político é uma ideologia estética, com os seus ideais de imaginação criativa, autonomia artística e totalidade poética. E, tal como a teoria romântica da literatura, é uma ideologia que incorpora uma reflexão sobre as suas próprias contradições, ou seja, é ao mesmo tempo ideologia e crítica, disposição emotiva e ironia, efusão sentimental e reflexão; embora, nas suas manifestações extremas, possa mesmo ser um irracionalismo político elevado à categoria de religião. Foi com uma crítica feroz do romantismo político, da sua visão estética do mundo e da sua tendência para a discussão perpétua e para a indecisão, que Carl Schmitt deu entrada na cena intelectual alemã, em 1919. O romantismo político, tal como o analisou Schmitt, é uma categoria trans-histórica e quase nunca prescinde de um outro conceito muito próprio da época romântica: o conceito de nação, essa “comunidade imaginada”, às vezes miticamente sublimada. Importa acrescentar que o romantismo político é muito mais propenso a uma relação com o passado (veja-se o que foi a Grécia para Hölderlin) do que às utopias.

Outra coisa diferente é o culto melancólico, como aquele que Fidel Castro suscita: uma melancolia de esquerda, muito mais barroca do que romântica. A ideia de uma melancolia de esquerda surge de passagem num texto de Walter Benjamin e teve alguns ecos pontuais em Itália e Inglaterra nos anos 90. Foi recentemente desenvolvida num livro do historiador italiano Enzo Traverso, acabado de publicar em França (Mélancolie de gauche, éditions La Découverte). Traverso entende a melancolia de esquerda como uma “tradição escondida”, tão antiga quanto a ideia de esquerda, mas dotada de uma vida discreta e quase subterrânea. Foi o colapso dos regimes socialistas da Europa de Leste que a trouxe à superfície, já que antes tinha sido recalcada ou censurada. A melancolia de esquerda é, como diz Traverso, uma melancolia dos vencidos, uma disposição interior que confere uma enorme força de sedução ao objecto de amor perdido, que por isso mesmo se presta à elegia. Não vou aqui resumir em meia dúzia de linhas o interessante livro de Enzo Traverso. Importa no entanto lembrar que Freud publicou um célebre estudo sobre “Luto e melancolia”, onde esses dois estados psíquicos são analisados: enquanto o luto é um sentimento causado por uma perda real que se supera com o tempo (uma vez feito o “trabalho do luto”), a melancolia é causada por uma perda fantasmática, pela relação com um objecto que nunca teve existência real. A presente circunstância faz-nos ver que a melancolia de esquerda é uma disposição que continua a manifestar-se através de sintomas. Esses sintomas não são necessariamente patológicos, a não ser quando se transformam em alucinação e tristeza permanentes. Na Idade Média, os monges eram atacados por uma forma particular de melancolia, a que chamavam acédia. Sucumbir à acédia era um pecado, decretou a doutrina da Igreja: Deus criou-nos para sermos felizes, não para carregarmos às costas o peso desse planeta lento e sinistro que se chama Saturno. A doutrina política de esquerda também quis afastar a melancolia. Em vão.   

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