Arte Antiga lança campanha para comprar retrato do embaixador que nunca deixou de ser frade

São precisos dez mil euros para adquirir uma “miniatura preciosa” que representa José Maria da Fonseca Évora, o franciscano-diplomata que refundou a segunda maior biblioteca de Itália. Museu preferiu não usar o remanescente da campanha de aquisição da Adoração dos Magos de Domingos Sequeira.

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O pequeno retrato vai estar em exposição no átrio do Museu Nacional de Arte Antiga nos próximos seis meses Enric Vives-Rubio
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Nem mesmo quando já era oficialmente o embaixador de Portugal em Roma deixou o hábito de franciscano. É, aliás, com ele vestido que é retratado na pintura que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) quer agora comprar através de uma nova campanha de angariação de fundos com objectivos bem mais modestos do que a que, no ano passado, acabou por “Pôr o Sequeira no Lugar Certo”

Desta vez, o museu e o seu Grupo de Amigos contam reunir os dez mil euros necessários para adquirir a um coleccionador estrangeiro que prefere manter-se anónimo uma pequena pintura sobre marfim — 16,2 X 11,4 cm — representando José Maria da Fonseca Évora, um frade que foi embaixador de D. João V em Roma e depois bispo do Porto, executada por volta de 1730.

“Não se trata de conseguir os 600 mil euros de que precisámos para o [Domingos] Sequeira e, por isso, será uma operação mais discreta, destinada a recolher contribuições sobretudo no museu, embora haja uma conta aberta para quem quiser participar”, diz ao PÚBLICO o director do MNAA, António Filipe Pimentel, acrescentando que são muitos os visitantes estrangeiros que perguntam se há no museu uma caixa para donativos. “A ideia é fazer com que estas angariações de fundos se tornem parte da nossa rotina, como acontece em grande museus em todo o mundo, em que uma campanha começa mal acaba a anterior. O que queremos é que as pessoas sintam que o museu pertence a todos e que todos podem e devem participar no enriquecimento das suas colecções.” E os portugueses, garante Pimentel, já mostraram que estão dispostos a fazê-lo.

Esta pintura com o franciscano que chegou a Roma em 1712 na célebre embaixada do rei de Portugal ao Papa Clemente XI, encabeçada pelo marquês de Fontes, e que só deixou a cidade para se tornar bispo 28 anos depois, foi “muito provavelmente” feita a partir de um retrato que entretanto se perdeu. Para o MNAA, integrá-la na sua colecção é uma oportunidade de nela ver representada uma das personagens de primeira grandeza do reinado de D. João V, “um homem com uma enorme influência política  e um talento diplomático excepcional” que tem um “bónus”, acrescenta o director — esteve ligado ao período das grandes encomendas artísticas para o Convento de Mafra e para a Basílica da Patriarcal, a grande igreja do Paço da Ribeira, destruída pelo terramoto de 1755.

“No campo da encomenda artística, estamos no nosso território. Frei José Maria da Fonseca Évora não é só uma das figuras mais importantes deste período, é um elo de ligação com a Santa Sé e com o que de melhor se faz na arte romana.”

Exposição no Verão

A campanha que agora começa e que deverá prolongar-se pelos próximos seis meses terminará no Verão com uma exposição na Sala do Tecto Pintado, comissariada pela historiadora de arte Teresa Leonor Vale, autora de um livro dedicado aos diplomatas que em Roma estiveram ao serviço de D. João V (Arte e Diplomacia — A vivência romana dos embaixadores joaninos, Scribe, 2015).

Talvez dentro de seis meses se possa avançar com mais pormenores sobre o retrato-miniatura que o MNAA vai ter exposto no átrio durante a campanha, não muito longe do lugar onde esteve A Adoração dos Magos, de Domingos Sequeira. Para já, não se sabe quem o encomendou, nem quem é o seu autor. A data, cerca de 1730, atribuiu-a Teresa Vale com base no que se conhece do percurso deste frade português que chegou a superior da ordem franciscana — “uma espécie de governador, equiparado a bispo”, precisa a investigadora — e na forma como é representado. Tem um livro na mão e a cortina atrás de si deixa antever uma estante repleta. 

“Frei José Maria da Fonseca Évora é um homem de cultura e de livros. Mas, mais do que isso, é o responsável pela refundação de uma das bibliotecas mais importantes da Roma do seu tempo, a que ficava no convento onde ele vivia, o de Santa Maria em Aracoeli. Acho que esta miniatura celebra esse momento da refundação”, explica Vale, sublinhando a importância do português nesta ordem religiosa. Hoje o convento já não existe — foi demolido para que no seu lugar fosse construído o monumento a Vítor Emanuel II, o primeiro rei da Itália unificada, também conhecido como “máquina de escrever” — mas a biblioteca do padre Évora (era assim que muitas vezes o tratavam) foi incorporada na Biblioteca Nacional de Roma. “Era a mais importante depois da Vaticana”, diz a historiadora. “E a importância deste franciscano português é de tal forma reconhecida, mesmo em Itália, que ela foi incorporada mas não perdeu o nome — é conhecida como a Biblioteca Eborense”, acrescenta Pimentel.

Com uma carteira recheada de bons contactos, a influência que se espera do superior de uma ordem religiosa e uma certa aptidão para consumir arte, José Maria da Fonseca Évora começou por ser um “embaixador oficioso” quando Portugal estava de relações cortadas com o Vaticano — era o encarregado de negócios de D. João V — e assumiu depois o lugar a título oficial.

“Ele começa por ser um embaixador de recurso quando o rei manda regressar de Roma todos os portugueses que não fossem residentes porque é prático tê-lo nessas funções, já que é um homem discreto, conhece bem o meio e se move com agilidade”, acrescenta Vale, explicando que ele não tem o perfil típico de um embaixador joanino — não é um aristocrata, é um erudito com gosto pelo ensino que, embora viva “com razoável fausto”, nunca deixa o convento nem o hábito enquanto está na capital italiana.

Em Portugal conhecem-se apenas três retratos deste “embaixador improvável” — um em escultura (um busto que está no Paço de Vila Viçosa) e dois em pintura, muito formais, de quando era já bispo (um é do Paço Episcopal do Porto e o outro da Irmandade dos Clérigos) — embora haja mais em Itália, incluindo um outro busto de um dos maiores escultores do barroco romano, Carlo Monaldi, um dos artistas mais representados em Mafra e certamente um dos preferidos deste frade. 

“Há registos do seu cortejo triunfal de entrada no Porto que são uma delícia, que falam de toda a bagagem que trouxe com ele em 1740.” Nessa bagagem viriam, muito provavelmente, algumas das peças que hoje estão espalhadas por colecções públicas e privadas portuguesas, como paramentos, esmaltes, porcelanas chinesas e prataria. 

“É um apreciador de arte, mas não tem muito traquejo a lidar com artistas nem com outras questões de ordem prática”, adianta Teresa Vale, fazendo referência às cartas que troca com o director da Academia de Portugal em Roma, entretanto regressado a Lisboa a mando do rei: “José Correia de Abreu repreende-o muitas vezes porque uma ou outra peça [para Mafra ou para a Patriarcal] chegaram estragadas porque ele não acompanhou como devia ser o envio para Portugal…”

Seja como for, acrescenta António Filipe Pimentel, “por todos os motivos e mais algum, este franciscano especialíssimo” merece estar na colecção do MNAA, e este retrato sobre marfim — “uma miniatura preciosa” feita para uma “memória íntima” que deve ser vista como o “subproduto de luxo” de um retrato perdido — é uma “oportunidade a não perder”.

Se assim é, por que não usa o MNAA o dinheiro que sobrou da campanha do Sequeira (depois de comprado o retrato de D. João V de Giorgio Domenico Duprà sobram cerca de 50 mil euros) para adquirir a obra? “Esta compra tem também o valor pedagógico de apresentar a boa parte do nosso público esta figura da diplomacia portuguesa. E esse valor é reforçado por uma campanha. Além disso, esta bolsa que ficou do Sequeira pode vir a ser usada para comprar uma obra que exija um investimento maior ou até para lançar uma nova e mais ambiciosa operação de angariação de fundos, quem sabe… Nestas coisas, temos de estar prevenidos para responder ao mercado se aparecer algo que não possamos mesmo deixar fugir.”

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