Começa agora a Cuba pós-Raul

“Nos últimos anos foram aprovadas mais iniciativas de abertura do que em meio século de revolução.” O fidelismo começou a ser enterrado pelo próprio e acabou com o irmão.

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É provável que as mudanças se acelerem em Havana, agora que desapareceu “uma espécie de tribunal de último recurso para os conservadores” Enrique De La Osa/Reuters
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Bandeira de Cuba a meia-haste AFP/YAMIL LAGE
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Bandeira de Cuba a meia-haste AFP/ADALBERTO ROQUE
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Bandeira de Cuba a meia-haste Reuters/CARLOS BARRIA
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Raúl Castro sucedeu ao irmão em 2006 Reuters/DESMOND BOYLAN

Quando Fidel Castro transferiu o poder para o irmão, Raúl, há dez anos, Cuba atravessava a sua pior crise económica desde o fim da União Soviética. Com este colapso, a ilha comunista perdeu 35% do seu PIB (de 1989 a 1993) e o pai da revolução teve de tomar medidas drásticas e contrárias às suas convicções. Recentemente, Cuba mudou mais do que os primeiros anos de Raúl faziam adivinhar e o futuro já é o pós-Castros.

O castrismo afinal era fidelismo. Em 2010, dizia ao PÚBLICO o especialista em Cuba a viver nos EUA Javier Corrales: “Não há dúvidas de que os cubanos reconhecem que o Estado, sob Fidel, esteve sempre sob o seu comando forte e indivisível, o que desencorajava muitas formas de dissidência. Os cidadãos sabiam que o fidelismo não mostraria misericórdia”.

Devagar, é certo, Raúl deu início à nova era, ainda de transição. “O pós-Fidel começou em 2006, o que começa a contar a partir de agora é o pós-Raúl”, diz um diplomata ocidental à AFP em Havana. Dez anos de “de-fidelização” que deram um salto grande no Congresso do Partido Comunista de Cuba em 2011, no qual Raúl fez aprovar uma série de medidas económicas destinadas a tirar o país da falência.

Quando o socialista Fidel chegou ao poder, expropriou as multinacionais dos EUA e mais de 50 mil pequenos negócios, ao mesmo tempo que perdia empresários e profissionais de várias áreas num exílio em massa. Tudo se foi aguentando, mesmo com o embargo, até ao fim da URSS, “um golpe demolidor”, como o próprio admitiria em 2008. “Foi como se deixasse de nascer o sol.”

Com a ruína soviética, Cuba perdeu 85% do seu comércio, a sua fonte de crédito, ajuda militar e tecnológica, e o seu principal fornecedor de bens e serviços. Seguiram-se 120 meses de desgraças, com medidas para enfrentar a falta de energia, combustível e produtos básicos, e os preços a disparem até 4000% no mercado negro. O plano lançado pelo regime, recorda o El País, visava que “a iniciativa privada, o investimento externo e o turismo proporcionassem à população o que o Estado não podia garantir”.

Como 90% da economia era propriedade do Estado, criaram-se empresas mistas, controladas ainda por Cuba mas com investimento estrangeiro, autorizou-se a entrada de remessas e de cubanos a viver no estrangeiro com família na ilha. Outras medidas de urgência passaram pela transformação de empresas estatais em cooperativas, entrega de terras aos trabalhadores em regime de usufruto e autorização de alguns trabalhos por conta própria. Em simultâneo, entrava em circulação o peso cubano convertível juntamente com o dólar (em paralelo com o desvalorizado peso cubano).

Entre 1993 e 1994, nos anos que se seguiram ao pico da crise, fugiram da ilha umas 35 mil pessoas (crise dos balseros), mas a oposição que Washington chegou a acreditar que enfrentasse o regime não irrompeu. O vazio da URSS acabou por ser, em parte, preenchido pela China (que Raúl visitou em 1997 para aprender como se podia conjugar um regime socialista com algum tipo de capitalismo) e pela Venezuela de Hugo Chávez.

Literacia e cuidados de saúde

Fidel começou assim, ele próprio, a enterrar o fidelismo. Com ele, é preciso recordar, o analfabetismo (60% nos anos de Batista) foi praticamente extinto e os cuidados de saúde passaram a estar disponíveis para todos, algo que muitos consideram especialmente extraordinário tendo em conta a fuga de cérebros da ilha no pós-1959.

A economia que Fidel entregou a Raúl estava de novo em muito maus lençóis e este começou a segunda fase da mudança, com reformas socioeconómicas inéditas. Expandiu-se a iniciativa privada e o trabalho por conta própria, passou a ser possível comprar e vender imóveis e carros e possuir computadores e telemóveis (mas não se democratizou o acesso à Internet, que continua lento e controlado). Quem quiser agora pode entrar na ilha e quem quer pode sair, surgiram impostos e enterrou-se a proibição dos cubanos terem ou frequentarem hotéis e centros turísticos.

Com a reaproximação aos Estados Unidos de Barack Obama, a partir de 2014, as mudanças acentuaram-se. “Nos últimos anos foram aprovadas mais iniciativas de abertura do que em meio século de revolução”, escreve o El País. Apesar de tudo, continua o jornal, citando Oscar Fernández, professor na Universidade de Havana, estão a acontecer muitas coisas a vários níveis “e não nos apercebemos necessariamente de tudo, mas este novo modelo com estas novas regras de funcionamento está a provocar determinados comportamentos que fazem emergir novos actores”.

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Uma mulher olha para um mural de Fidel Castro em Havana ADALBERTO ROQUE/AFP

Hoje, a situação económica é crítica e o regime continua sem ceder directamente no controlo do país. Mas amanhã é outro dia e Raúl já anunciou que sairá da presidência em 2018. “Creio que há aqui uma oportunidade para abrir mais esta sociedade e avançar mais rapidamente nas reformas”, diz a dissidente moderada Miriam Levya.

Num país de onze milhões de pessoas, onde segundo uma sondagem de Março do ano passado (encomendada pelos grupos de media Univision Noticias e Fusion, e à qual se associou o Washington Post), 55% quer viver fora – mais de dois terços quando se consideram apenas os jovens até aos 35 anos –, é bom que Havana comece a mudar mais depressa.

Para o consultor especialista em Caraíbas David Jessop, ouvido pela Reuters, a morte de Fidel “elimina uma espécie de tribunal de último recurso para os conservadores, ao mesmo tempo que dá esperança de mais rápidas mudanças e reformas aos jovens reformistas no partido”.

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