Chegou o mundo da pós-verdade

No seu magnífico Bússola, Mathias Enard conta a seguinte história: Franz Ritter, o protagonista, fantasia pela noite dentro sobre Sarah, o fascínio da sua vida. Às 3h45 da manhã, lembra-se de lhe ter dito que quisera ser músico desde que descobrira aos 14 anos o “Doutor Fausto” de Mann, para a impressionar. “Que grande mentira”, rememora, “a minha vocação de musicólogo não existe”. E acrescenta: “Como explicar ao mundo, caro Thomas Mann, caro Mágico, que em criança a minha paixão se dirigia para os relógios e para os pêndulos?”. Era portanto uma mentira, o que se diria uma “pequena mentira” (ou uma “grande mentira”, como ele se diz?), em todo caso quase inconsequente. Sarah não o vai amar menos nem mais por descobrir que, em criança, preferia relógios em vez da iluminação musical bebida num livro clássico. Neste caso, a banalidade da mentira é só aquele átomo de sedução que associa o personagem como personagem de si próprio: é tudo e é quase nada, Sarah talvez nem se lembre, se se lembrar talvez não ligue, foi somente uma frase entre dois olhares.

Por isso, Charles Darwin – faz mais de 150 anos – alegava que à natureza é indiferente saber se os humanos mentem ou não, pois só cuida de registar se são adaptativos, ou seja, se respondem às circunstâncias e aprendem com elas. O nosso Ritter, noite fora em Viena, já não sabe se a mistificação da sua vocação, vestida com a aura da grande literatura, foi ou não útil para a aproximação a Sarah, que em todo o caso continua a vê-lo como um companheiro de letras e não como o amante desejado. Mas ele tentou à sua maneira, adaptou-se portanto.

Claro que tudo isso era antes dos tempos modernos e da comunicação inundante. Quando os Dicionários Oxford decretaram que a palavra do ano que vai terminando é “pós-verdade”, foi como se, constatando o óbvio, tivéssemos descoberto, entre a diversão e o medo, que alguma coisa vai podre neste reino da Dinamarca. Ora, o conceito de “pós-verdade” parece ser uma alusão à banalidade da linguagem, mas pode ser a constatação da política crua sem qualquer fronteira. De facto, a primeira vez que terá sido usado o conceito terá sido em 1992, por um dramaturgo, Steve Tesich, a propósito do Watergate. Não se pode portanto dizer que os Dicionários Oxford estejam a inventar alguma coisa de novo, mas talvez estejam só a constatar que, com Trump, Hollande, Putin, Merkel, Erdogan e quejandos, a “pós-verdade” se tornou uma forma de submissão, não para que não haja respostas, mas para que não haja perguntas.

A “pós-verdade” é isto mesmo, uma mecânica de palavras, como provado pela difusão de notícias falsas, que foi uma das estratégias dominantes de Trump. Já tinha havido disso, há em todos os grandes e pequenos conflitos políticos. Mas agora é uma indústria: veja o caso do Facebook, em que a reprodução da notícia pode angariar para os seus autores uma receita publicitária – e por isso as máquinas de Trump inventaram o apoio do Papa, o envolvimento de Hillary Clinton em assassinatos satânicos e outras pérolas, na certeza de que era isto que rendia. Beneficiaram neste movimento de um incentivo de mercado, o ganho em função dos likes e das reproduções, que estimula a notícia mais delirante, por ter mais hipóteses de ser reproduzida.

Escrevia Ernst Bloch, o mais profundo filósofo marxista do século XX, que “tudo o que existe não pode ser verdade”, quando o mundo reconhecia o ascenso do nazismo e dos imperialismos. É de bom senso admitir hoje que tudo o que existe não pode ser verdade, porque tanto do que existe quer ser uma “pós-verdade” industrializada, pardacenta, abissal e contaminante. Na era da mentira, note bem, tudo se torna possível sobretudo por não ser verdade.

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