As paredes e o túnel de uma dança feita de turbulência

Depois de Tábua Rasa, António Cabrita, Henriett Ventura, São Castro e Xavier Carmo voltam a juntar-se para a criação de Turbulência. Até domingo, dança-se no Teatro Camões a gestão e o apaziguamento de um distúrbio pouco claro.

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Turbulência, a coreografia co-assinada por Xavier Carmo, Henriett Ventura (ambos da Companhia Nacional de Bailado), António Cabrita e São Costa (da Vo’arte) Bruno Simão
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Ainda durante a preparação de Tábua Rasa, em 2015, à medida que os seus quatro criadores e intérpretes começaram a sentir a energia que imprimiam no espaço e a vibração que dele se apoderava, Xavier Carmo começou a pensar na hipótese de explorar coreograficamente a ideia de turbulência. “Na altura estávamos a trabalhar um espaço muito etéreo”, descreve a propósito dessa peça, que parecia puxar para o palco alusões avulsas à história da humanidade para reescrever uma narrativa íntima mas universal do que é o início. Só que a tal vibração despontada no espaço branco, luminoso de Tábua Rasa, começou a despertar no bailarino esta fixação na turbulência.

Pouco depois, aconteceu ouvir a entrevista de um físico dizendo que gostaria de colocar duas perguntas a Deus: porquê a gravidade e porquê a turbulência? “Ele achava que tinha resposta para a primeira, mas não para a segunda”, recorda o bailarino e coreógrafo. “A forma como a turbulência se manifesta é um mistério, não é reproduzível em laboratório. Consegue-se medir, mas não se controla.” À medida que foi investigando o assunto, foi ficando cada vez mais intrigado e seduzido.

Não quer isto dizer que Turbulência, a coreografia co-assinada por Xavier Carmo, Henriett Ventura (ambos da Companhia Nacional de Bailado), António Cabrita e São Costa (da Vo’arte) — a ver até domingo no Teatro Camões, em Lisboa, integrada no festival In Shadow —, coloque sete bailarinos a dançar equações da física como se fossem traduzíveis num conjunto de movimentos. Nada disso. Toda a investigação sobre a turbulência foi depois humanizada, através de uma procura de situações quotidianas sugeridas por esse estudo das variáveis físicas (massa, velocidade, longitude e viscosidade). Pensando na turbulenta leitura que havia feito de O Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, São Castro levou também esse texto para o colectivo, e daí saiu uma das imagens basilares de Turbulência, a de corpos em sucessivos encontros e desencontros, a partir de um homem que percorre as ruas tentando desviar-se de outras pessoas, alcançando e falhando esse propósito.

Se Tábua Rasa acontecia sobre um luminoso quadrado branco com a dimensão aproximada de um ringue de boxe e o público disposto numa proximidade que convidava a uma experiência íntima, em Turbulência o palco do Teatro Camões é usado aparentemente em toda a sua extensão. E escreve-se “aparentemente” porque as duas enormes paredes, cujo fim não é sequer visível, afunilam o espaço em palco, fazendo desta peça um lugar mais asfixiante e concentracionário. Xavier e Henriett citam o ponto de fuga de Stanley Kubrick como referência para este “túnel”, que parece sugar toda a atenção.

Depois do bom acolhimento de Tábua Rasa, Luísa Taveira (a directora artística da Companhia Nacional de Bailado, de partida para o Centro Cultural de Belém, com Paulo Ribeiro a suceder-lhe) chamou os quatro bailarinos e coreógrafos, desafiando-os a criar uma nova peça. Tal como antes acontecera, deu-lhes carta-branca. E como Xavier já tinha partilhado com António esta centelha de ideia focada na turbulência, esse rapidamente se tornou o foco da nova criação.

Sem uma dramaturgia pré-definida, foram juntando pistas em torno do conceito de base e criando blocos autónomos, guiados por uma poesia do movimento que se organiza a partir de exercícios intuitivos. “Há uma dramaturgia que vamos descobrindo”, diz Cabrita. Até porque nenhum deles está sempre em palco, nenhum tem uma leitura integral de Turbulência “nem vê a peça que o outro vê”. Em Tábua Rasa, quando saíam de cena, mantinham-se focados, como observadores, era uma experiência “mais imersiva”, classifica Xavier. Agora, simplesmente desaparecem, voltando mais tarde, como se fossem de novo largados num palco em que tentam perceber o seu lugar.

Talvez por isso há quem tenha sentido nos bailarinos, no meio dos seus encontros e desencontros, um estado de “pós-turbulência”. “A [bailarina] Catarina Câmara, quando assistiu a um ensaio, disse que estamos a gerir e apaziguar alguma coisa que aconteceu”, conta São Castro. “Neste processo, há ordem e desordem, e nós quase alimentamos a desordem para criar esta peça. Em palco estamos depois a resolver isso, embora não se veja o que acontece para que estejamos a viver essa situação.”

Com figurinos de José António Tenente a vincarem a individualidade e a recusarem um sentimento colectivo, o que sobra nas figuras que vagueiam pelo palco são relações de dominação. Henriett admite que “as mulheres são muito dominadoras” e formam, talvez, o único esboço de um movimento mais grupal. Mas São Castro ressalva que, “ao ser-se manipulado não quer dizer que não se esteja a manipular também de alguma forma”.

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