O Estado a que chegamos

Os incêndios deste ano têm vindo a explicitar duas debilidades fundamentais do Estado democrático no continente português:

  • A incapacidade que, ao longo de mais de 40 anos de Democracia, o referido Estado tem demonstrado na resolução de problemas concretos nos territórios do continente. No caso, os incêndios repetem-se todos os anos e todos os anos se reinventa a roda, isto é, são apresentadas novas medidas, por vezes já ensaiadas no passado, sem memória nem reflexão crítica do que bem e mal foi feito anteriormente. Isto é, o Estado português não mostra ter uma cultura de aprendizagem com os erros;
  • As dificuldades que o Estado tem demonstrado, aos mais diversos níveis, particularmente visíveis no caso dos incêndios, quando a articulação entre organismos da sua administração - de um mesmo ministério, de ministérios diferentes e/ou de níveis diferentes de administração - é necessária para atalhar os problemas dos territórios. Ou seja, o Estado português continua a ter uma cultura corporativa de atuação. Cada organismo da administração central funciona como se os outros não existissem, adotando territórios intermédios - regionais e sub-regionais - próprios de atuação e desconexos: distritos, regiões plano, regiões NUTS II e NUTS III, regiões de turismo, regiões de saúde, regiões agrárias, etc, e, no caso da administração local, as associações de municípios, mais recentemente de fins múltiplos. Esta geometria variável do Estado nos territórios intermédios dificulta a articulação entre organismos e políticas sectoriais e/ou administrações bem como a mobilização dos recursos afetos aos diferentes sectores. Não só os territórios intermédios dos diferentes organismos do Estado e/ou administrações são diferentes como nem sequer correspondem aos territórios funcionais macro e micro regionais que caraterizam no presente o continente português.

A desterritorialização do Estado no continente português, isto é, o caos territorial intermédio da atuação e a cultura organizacional do referido Estado conduzem à discussão abstrata e superficial dos problemas do País. O País é discutido em média, à margem dos territórios intermédios funcionais que o caracterizam e que permitiriam uma melhor equação e implementação em concreto de estratégias de desenvolvimento. Na ausência de territórios intermédios de suporte, a discussão tende para um irrealismo abstrato que apenas serve para alimentar os escândalos na imprensa e para suportar toda uma cultura política de atuação superficial, moralista e inconsequente.

Por conveniência tática e conjuntural de parte da classe política e/ou da sociedade portuguesa, após o referendo à regionalização do continente português de 1998, o não plural vitorioso foi convenientemente convertido num sim singular ao acentuar da concentração e do centralismo desconexo do Estado no continente português. Por detrás deste posicionamento esteve e continua a estar a ideia iluminada que os “parolos” dos autarcas têm a exclusividade do mau gosto, da sujeição aos lobbies e do despesismo do Estado português e que é neste poder central abstrato e territorialmente desconexo, imune ao mau gosto, aos lobbies e ao despesismo (?), neste centralismo do Estado preconceituoso, provinciano e desconfiado, que o País pode encontrar as soluções para os seus problemas de desenvolvimento, como se tem visto.

Pelo caminho, o País foi convencido da indesejabilidade da eleição direta de classe política ao nível regional e sub-regional ou supramunicipal, limitando-se, deste modo, a aplicação do princípio da subsidiariedade e a possibilidade de responsabilização democrática do poder político, nos seus diferentes níveis de atuação, em particular nos territórios intermédios. Já agora, o mesmo centralismo preconceituoso, provinciano e desconfiado que, nas últimas décadas, o poder central em Portugal tem mostrado ter em relação ao País, nos últimos anos, as instituições europeias têm mostrado ter em relação a vários Estados Membros. Os tempos têm sido de domínio provinciano, também ao nível europeu. Acresce que o Príncipe tende a ser tanto mais iluminado quanto mais vastos são os territórios que têm de gerir e mais abstrato é o poder que tem de exercer.

Fixar os territórios intermédios de atuação do Estado, de preferência, em territórios funcionais, isto é, correspondentes aos padrões de ocupação populacional e às economias que nestes territórios intermédios se desenvolvem, é essencial para melhor coordenar os organismos e as administrações, mobilizar recursos e atribuir competências, em particular e no caso da floresta, de prevenção e combate aos incêndios, tendo em conta que a referida floresta é na sua maioria privada e, nos territórios mais fustigados, de minifúndio.

Qualquer reforma do Estado digna desse nome tem de ser política e administrativa, tem de abranger e dar coerência organizacional à atuação dos diferentes níveis de Estado e tem de contribuir para a responsabilização democrática do poder político nos diferentes níveis territoriais de atuação do Estado e/ou para o aprofundamento da Democracia. Não é certamente uma reforma meramente administrativa, ministério a ministério, organismo a organismo, ou administração a administração do Estado, como se os outros ministérios organismos e administrações não existissem e à margem da reforma do sistema político, central, regional e local.

Professor da Católica Porto Business School, da Universidade Católica Portuguesa

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