"Se te tornares um purista, a música está morta"

Paal Nilssen-Love é um dos bateristas fundamentais do jazz contemporâneo. Sábado, o norueguês de 41 anos tocará a solo no Jazz Em Agosto. Domingo, com os seus Large Unit, banda de 14 elementos, encerrará o festival.

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Músico, promotor (este mês estará em Oslo como director do festival Blow Out), editor, Paal Nilsen-Love está umbilicalmente ligado ao jazz. foto: Ziga Koritnik

“Há dias falava com um dos músicos mais novos e ele arranjou uma óptima expressão para descrever uma determinada atitude perante a música: ‘já acabaram antes sequer de começar’”. Quem fala com o Ípsilon é Paal Nilssen-Love, o baterista norueguês que chegou muito novo a posição de destaque no jazz e na música improvisada europeias e que é hoje nome incontornável do cenário contemporâneo feito de arrojo, invenção e um constante desejo de procura. O músico mais novo referido por Paal, 41 anos, pertence aos Large Unit, big band composta por jovens músicos noruegueses em destaque na cena local, que compõem a maioria da formação, mas também suecos, finlandeses, dinamarqueses e brasileiros.

Paal Nilssen-Love, com a muito aguardada Large Unit, é um dos grandes destaques da edição 2016 do Jazz Em Agosto que termina este domingo e que levou à Gulbenkian Marc Ribot, Tim Berne, Eve Risser ou os Petite Moutarde de Théo Ceccaldi. Sábado, 13 de Agosto, protagonizará um concerto a solo que se seguirá à apresentação, às 18h, na Sala Polivalente da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, do livro The Sound of The North – Norway And The European Jazz Scene, assinado pelo jornalista italiano Luca Vitali. Depois, liderará os seus Large Unit no concerto de encerramento do festival, domingo, às 21h30. A big band (serão 14 elementos no Anfiteatro ao Ar Livre) formada em 2013, estreada em palco no Molde Jazz Festival desse ano, é uma representação perfeita dessa vontade de nunca acabar (muito menos antes de começar).

Ao citar a frase do jovem companheiro de banda, Nilssen-Love referia-se ao perigo que representa o enclausuramento consciente numa zona de conforto. “Por vezes é demasiado fácil para um músico jovem ligar-se a um estilo e decidir que é nele que vai ficar. Não por razões políticas, como o Evan Parker e o John Stevens em meados dos anos 1960”, aponta, antes de ilustrar o ponto que pretende defender: “‘Vou dedicar-me à escola reducionista  [corrente de música improvisada surgida no final dos anos 1990] porque não exige muita energia e está recheada de músicos criativos e simpáticos. Posso ficar 20 minutos a tocar a tarola com uma escova de dentes eléctrica e já estou a criar qualquer coisa’. Não pode ser”, defende. “Tens que exigir mais de ti a toda a hora e expandir a tua forma de tocar e de agir. É muito triste ver um músico de 25 anos e perceber, enquanto ele toca, que aquilo será tudo o que fará, não só naquele concerto solo, mas para o resto da vida. É isso que significa ‘estar acabado antes de começar’”.

Paal Nilssen-Love começou há muito, muito novo. Integrou os The Thing de Mats Gustafsson, com quem passou pelo Jazz em Agosto, foi um fundadores dos Atomic, grupo charneira do jazz escandinavo do início do século XXI, cruzou-se com Peter Brötzmann no Chicago Tentet, e com Ken Vandermark, por exemplo, na sua Territory Band. Aos 16 anos começou a integrar grupos de improvisação liderados pelo saxofonista norueguês Frode Gjerstad e, ao longo do seu percurso, sempre em movimento, sempre generoso e curioso por nova música e novas experiências, colaborou com o americano Joe McPhee ou com o português Rodrigo Amado, viajou para o Brasil, para a Coreia do Sul, para a Etiópia. “Há medida que os anos passam, é mais difícil seres atingido por aquela maravilhosa sensação de surpresa trazida por um som que nunca ouviste ou por uma forma de tocar bateria com que nunca te deparaste. É por isso que sinto tão importante viajar por todo o mundo para alargar horizontes, para descobrir mais”. Nada está acabado, como o demonstram não só as viagens, mas a forma como ocupa o palco, lançando-se à bateria com uma mestria técnica e uma energia sem traços de exibicionismo: interessa-lhe a forma como pode comunicar com os que o acompanham e com o público que assiste; intrigam-no e desafiam-no as possibilidades sempre renovadas que o instrumento lhe apresenta. Enquanto recua a 1999, ano em que fez o seu primeiro concerto solo, em Oslo, antecedendo a actuação de um duo com Peter Brötzmann, dirá: “És sempre tu mesmo a 100 por cento, mas por vezes é como se perdesses o controlo da música e como se fosse ela que te estivesse a tocar. Essa é uma sensação especial, porque não tens a certeza do que encontrarás ao virar da esquina. Por vezes, encurralo-me num som ou num padrão e penso ‘estou lixado, o que vou fazer agora?’ Mas a música acabará sempre por te mostrar uma saída”.

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foto: Nuno Martins

O miúdo no clube de jazz

Paal Nilssen-Love falou ao Ípsilon desde Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, Açores. Aproveitava uns breves dias de descanso antes de regressar a Lisboa para preparar o concerto no Jazz em Agosto. Actuará naquela que é, desde Janeiro, a sua cidade. As suas viagens até Portugal já eram regulares há alguns anos, desde que os pais se mudaram para Tavira. Em Janeiro, depois de mais uma visita e quando se preparava para regressar a Oslo, deu por si a questionar-se. Se Oslo é “tão cara” e “tão fria em Janeiro”, se a família está em Portugal, melhor mesmo será seguir-lhes o rumo. Não para a mesma cidade, mas para o mesmo país. É agora habitante do bairro da Graça. Sendo Paal Nilssen-Love quem é, ou seja, músico em constante movimento, não lhe tem sobrado muito tempo para investigar aquilo que Lisboa tem para oferecer. “Desde que me mudei, passei em Lisboa um total de nove dias”, confessa.

Músico, promotor (ainda este mês estará em Oslo como director do festival Blow Out), editor (fundou em 2007 a PNL Records, plataforma para as suas edições, forma de controlar totalmente o processo de edição da sua música), Paal Nilsen-Love está umbilicalmente ligado ao jazz. Antes de saber falar, já lhe conhecia os sons e a linguagem. Cresceu no clube que os pais detinham em Stavanger, onde o pai, baterista, lhe dirigia o olhar para o instrumento que viria a ser o seu. Paal via e absorvia, aprendia. “O meu crescimento é muito especial e, à medida que os anos passam, cada vez mais me apercebo quão importante e afortunado foi crescer num clube de jazz, exposto a todo o tipo de sons. Ter o Art Blakey em nossa casa depois seus concertos, tocar com o Tony Oxley… Moldou-me enquanto pessoa e não menos como músico”, destaca.

Aquilo que é hoje está em grande parte representado no grupo que traz ao Jazz Em Agosto. A sua origem reside numa curiosa tomada de consciência. Quando fez 35 anos, ao começar a tocar com Jon Rune Strom, baixista que integra hoje os Large Unit, no trio de Frode Gjerstad, percebeu que, pela primeira vez na sua carreira, não era ele o mais jovem da banda. “Esse foi o impulso para criar algo com músicos mais novos” – como se, depois de absorver e aprender com gente mais experiente, fosse agora a vez de inverter posições e tornar-se ele guia. Nos seis meses seguintes, pensou nos nomes que queria ter a seu lado, “muito consciente de quem queria na banda e muito consciente de como ela funcionaria musical e socialmente”. Fundamental, explica, era ter dentro da banda pequenos núcleos - duos, trios - que “pudéssemos utilizar como um outro instrumento”. Fundamental, igualmente, seria assegurar “alguma estrutura à volta da qual os músicos pudessem tocar, mas simples o suficiente para se concentrassem em tocar bem e não em não cometer erros”. Por fim, era necessário que fosse absolutamente claro para todos a importância do silêncio. “Gosto quando a banda avança a todo o vapor, mas também gosto que tudo se reduza a um duo ou a um trio e que se desenvolva a partir daí. Num grupo de dez músicos em que a improvisação é determinante, há muitas vezes a ideia de que, assim que se entra em palco, todos tocarão todo o tempo, mas dessa forma a música perde direcção e não chega a lado nenhum. Só com o silêncio podemos apreciar o volume extremo”.

Desde a formação há três anos, os Large Unit editaram Erta Ale, registo de um dos concertos da digressão norueguesa de 2014, o EP Rio Fun e Ana, lançado em Abril último. Os dois últimos reflectem o fascínio crescente com a música brasileira, que define como um poço sem fundo de criatividade que não cessa de o surpreender - principalmente a criada no final dos anos 1960 e inícios da década seguinte, precisa. No Jazz em Agosto, estarão o percussionista Célio de Carvalho e Paulinho Bicolor, um “virtuoso da cuíca”. E talvez ouçamos Fendika, tema de Erta Ale baseado num ritmo do norte da Etiópia. É certo que ouviremos uma banda capaz de erguer uma massa sonora tumultuosa e de se quedar em mistérios de acordes esparsos. Ouviremos o som cru da electrónica em interacção com os baixos, as tubas, trombones, trompetes, saxofones, guitarra eléctrica, cuícas, congas. “A música jazz tem que sentir a temperatura do que está a acontecer. Tem que se misturar para agitar. Se te tornares um purista, isso quer dizer que a música está morta”. No Jazz em Agosto, veremos e ouviremos um baterista que continua a procurar. Convictamente. Fervorosamente.

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