Iniciativas Legislativas de Cidadãos já!

Por iniciativa do PS, foi aprovado um texto que remete o novo regime das Iniciativas Legislativas de Cidadãos para daqui a 2 anos, senão mais tarde. Se tal texto vier a prevalecer no futuro, o Parlamento terá adiado “para as calendas gregas” a subscrição de ILC por via electrónica.

1. As Iniciativas Legislativas de Cidadãos (= ILC) são um dos meios da “Democracia participativa” e “semi-directa”, corolário do Estado de Direito democrático[1], que visa assegurar uma abertura do Parlamento a determinados anseios da população. Porém, neste momento, requerem um mínimo de 35.000 assinaturas em papel [2], acompanhadas do número de cidadão eleitor e do nome da freguesia.

Devido aos formalismos excessivos, as ILC, apesar de não vinculativas para o Parlamento [3], têm tido pouca aplicação prática: entre 2003 e 2016, foram apresentadas apenas 5, ou seja, uma média de 0,38 por ano [4].

2. Estamos na era da globalização e das interacções electrónicas (v. artigo anterior). A internet é um instrumento proeminente para promover as relações sociais e também a participação democrática. Permitir que as ILC sejam subscritas electronicamente é desburocratizar, reduzir custos materiais e organizativos para os cidadãos, e possibilitar muito maior rapidez na contagem das assinaturas. O grau de participação pode certamente aumentar.

A informatização das ILC e das Iniciativas de Referendo vai ao encontro do espírito do Programa do actual XXI Governo constitucional, que preconiza “Melhorar a qualidade da democracia”, reforçando a “confiança dos cidadãos relativamente à política, às instituições democráticas e aos seus responsáveis, actuando em “áreas-chave” como a “valorização de mecanismos já existentes (…);” [5].

Por seu turno, o Programa eleitoral conjunto da Coligação do PSD e do CDS (“Portugal à Frente”) refere expressamente a simplificação dos procedimentos e dos requisitos exigidos para a iniciativa popular de referendo nacional e para a iniciativa legislativa por cidadãos.” [6].

E o Manifesto eleitoral” do Bloco de Esquerda às eleições legislativas de 2015 defende a redução do “número de subscritores necessários para a proposta de uma iniciativa legislativa popular” [7].

3. Na sequência de uma Petição à AR (ver vídeos), a matéria está a ser analisada na Assembleia da República (AR), tendo o PS apresentado, em 13 de Julho, uma proposta de Texto de substituição [8] que reduz (em teoria e num futuro longínquo, como se verá) o n.º de assinaturas das ILC para 20.000.

Porém, os Deputados do PS na 1.ª Comissão esqueceram-se (certamente por lapso) de referir estas “condições”, aquando da discussão da Petição n.º 24/XIII/1.ª em Plenário, em 6-5-2016; nem tão-pouco na Reunião da 1.ª Comissão, de 13-7-2016.

Com efeito, segundo a sua proposta, a alteração à Lei regulamentadora das ILC, após promulgação por parte do Presidente da República e publicação em “Diário da República”, terá ainda de aguardar até dois meses para entrar em vigor [9]. E, sobretudo, que, ademais, a redução do número de assinaturas fica dependente da “efetivação” da “plataforma eletrónica” pelos serviços da AR [10]. Uma solução burocrática, a concretizar no âmbito de um Projecto complexo do “Parlamento digital”, entregue a um Grupo de Trabalho, que apresentará um Relatório até ao final do ano civil de 2016 (embora seja admitida uma prorrogação).

4. A Proposta de Texto de substituição do PS foi aprovada por unanimidade, tendo sido retiradas soluções muito mais imediatas e muito menos burocráticas, como as do BE [11], do CDS [12] e do PEV [13]. O Texto final é a continuação, praticamente “ipsis verbis”, do Projecto de lei apresentado pelo PS [14].

5. O artigo 6.º, n.º 3, do Texto de substituição (da iniciativa do PS), à Lei n.º 17/2003, permite a submissão da ILC “através de plataforma eletrónica disponibilizada pela Assembleia da República, que garanta a validação das assinaturas dos cidadãos a partir do certificado disponível no cartão de cidadão….

Porém, de forma algo “sui generis”, o artigo 4.º do Texto de substituição preceitua que a “entrada em vigor das disposições relativas à submissão de iniciativas legislativas dos cidadãos através de plataforma electrónica” apenas se verifica “após a respetiva efetivação pelos serviços da Assembleia da República.

Com o devido respeito, estamos perante uma má técnica legislativa, pois, em boa verdade, não se trata de uma norma sobre “vacatio legis”, dado que a lei não entra “em vigor” na prática, mas, quando muito, apenas teoricamente.

O Texto de substituição foi votado na generalidade na Reunião Plenária de 20 de Julho.

5.1. Acresce que o Portal das ILC, em princípio, terá de ter cabimento no Orçamento da Assembleia da República, elaborado em 2017, para vigorar no ano civil seguinte de 2018, tal como o Deputado do PS, Pedro Delgado Alves, admitiu em declarações ao PÚBLICO, em Maio deste ano [15].

Assim, se nada for feito, até que o Portal electrónico da AR esteja a funcionar, continuará a ser inevitável que quaisquer ILC sejam apresentadas mediante 35.000 assinaturas em papel, e direito de iniciativa legislativa popular e o da iniciativa referendária só poderão ser exercidos electronicamente daqui a um mínimo de dois anos [16].

6. Ora, há soluções muito mais simples: por exemplo, continuar a remeter para o Grupo de Trabalho a criação do Portal na AR; mas, enquanto tal não sucede, admitir (ainda que transitoriamente) o recurso a Portais criados pela comunidade, como o da “Petição Pública”, já reconhecido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados; sendo as ILC depois recepcionadas através de um Formulário no “site” da AR.

De resto, reconhecer para as ILC um formulário que já é admitido para as Petições é a única solução compatível com o princípio da igualdade.

Pelo contrário, adiar esta solução para depois de 2018 é “dar com uma mão, mas tirar com a outra”, complicando o que seria fácil e renunciando a utilizar os meios já existentes para a concretização prática dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Urge que este rumo seja alterado, de modo a que os cidadãos possam exercer na prática os seus direitos fundamentais, enunciados pela Constituição (nos seus artigos 167.º, n.º 1, e 115.º, n.º 2 [17]), de modo célere, eficaz, sem subterfúgios nem adiamentos “sine die”.

Apelamos aos Partidos e Deputados representados na AR para que, no início da próxima sessão legislativa (15-9-2016), apresentem propostas de alteração (iniciativa legislativa superveniente), durante a discussão e votação na especialidade, no sentido de reconhecer Portais privados, para as ILC e para Iniciativas de Referendo, em termos exactamente idênticos aos existem actualmente para a submissão de Petições.

Em nome da Democracia participativa e da "força normativa da Constituição", é necessário que o Parlamento aprove celeremente as alterações devidas às Leis Referidas, no sentido de que as Iniciativas Legislativas de Cidadãos e as Iniciativas de Referendo sejam entregues electronicamente.

Vídeos:

1) Discussão da Petição n.º 24/XIII/1.ª em Plenário, em 6-5-2016

2) Audição dos Peticionantes, de 17-2-2016

 

Docente universitário; Representante dos Peticionantes da Petição à AR n.º 24/XIII/1.ª, intitulada Simplificação das Iniciativas Legislativas de Cidadãos e das Iniciativas de Referendo. Por uma democracia participativa ao serviço dos Cidadãos

 

[1] Artigo 2.º, “in fine”, e Preâmbulo, “in fine”, da Constituição da República Portuguesa.

Pode também considerar-se que faz parte do direito fundamental multifacetado de “tomar parte (…) na direcção dos assuntos públicos do País, (…) por intermédio” dos Deputados da AR, “representantes livremente eleitos” (cfr. art. 48.º, n.º 2, da Constituição).

[2] Art. 6.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2003, de 4 de Junho, regulamentadora, da ILC.

[3] A iniciativa do projecto de lei, oriunda dos cidadãos, nunca é vinculativa para a Assembleia da República. Isto é, o Parlamento tem de a admitir; de a apreciar (na segunda fase do processo legislativo parlamentar); de a discutir e votar, na generalidade, na especialidade, havendo ainda a votação final global (na terceira fase do processo legislativo; cfr. artigo 168.º, números 1, 2 e 3, da CRP).

[4] No caso da Iniciativa de Referendo, está em causa a alteração à Lei Orgânica do Referendo Nacional, de 1998, que exige 75.000 assinaturas em papel.

Em 18 anos de vigência da Lei aludida, foram apresentadas 3 (três) Iniciativas de Referendo (!!); o que dá uma média de 1 (uma) Iniciativa de Referendo a cada 6 anos.

[5] Programa do XXI Governo Constitucional, apreciado em Dezembro de 2015, http://economico.sapo.pt/public/uploads/articles/1_novo_site/ProgramaXXIGC.pdf, pg. 41.

[6] Programa eleitoral da Coligação “Portugal à frente”, disponível em http://www.portugalafrente.pt/assets/programa-paf-2015_email.pdf, divulgado em 29 de Julho de 2015, pg. 125.

[7] Manifesto, pg. 40.

Já em 21 de Dezembro de 2011, o BE apresentou um Projecto de lei, visando incorporar a realidade da Internet nas ILC (Projecto de lei disponível em http://www.beparlamento.net/sites/default/files/pl_ilc.pdf). Defendendo a informatização das assinaturas das ILC, Deputada CECÍLIA HONÓRIO, já em discussão de 2012, já lá vão 4 anos (!!).

O BE, por intermédio da Deputada Professora SANDRA MESTRE CUNHA, bateu-se por este objectivo (redução para 4.000 assinaturas), no Projecto de lei que apresentou (v. https://www.youtube.com/watch?v=o9JXYdEK04s), e na Reunião da 1.ª Comissão, de 13-7-2015, sem sucesso; tal como o PCP.

[8] Com os votos contra do BE e do PCP, que mantiveram as propostas anteriores.

[9] O Texto de substituição do PS prevê que a Lei entre em vigor no “primeiro dia do segundo mês subsequente à sua publicação”, instituindo, de forma infeliz, uma “vacatio legis” indeterminada.

[10] Cfr. art. 4.º do Texto de substituição.

[11] O artigo 6.º, n.º 2, do Projecto de lei n.º 167/XIII/1.ª, apresentado pelo BE, preceitua: “O direito de iniciativa legislativa de cidadãos pode também ser exercido por correio eletrónico ou através da internet, devendo a Assembleia da República organizar um sistema de receção eletrónica de iniciativas.

[12] Projecto de lei n.º 188/XIII/1.ª, apresentado pelo CDS-PP:

Artigo 6.º-A [Apresentação eletrónica]

1. O direito de iniciativa legislativa de cidadãos pode também ser exercido por correio eletrónico ou através da internet.

2. Para efeitos do disposto no número anterior, a Assembleia da República organiza um sistema independente de receção eletrónica de iniciativas legislativas de cidadãos.

Artigo 3.º (Entrada em vigor)

A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.

Neste Projecto, requeria-se a “verificação dos dados por parte de uma entidade credenciadora” (art. 6.º, n.º 3); a qual não seria necessariamente o Parlamento.

[13] Projecto de lei n.º 208/XIII/1.ª, apresentado pelo PEV (artigo 6.º, n.º 2, al. c)).

[14] V. o “Relatório” da reunião sobre este ponto aqui.

Apenas foi aditado o Projecto de lei do PSD, relativo à 5.ª alteração à Lei Orgânica do Referendo.

[15] “O projecto de lei do PS propõe que a submissão da ILC seja feita através de uma plataforma electrónica disponibilizada pela Assembleia da República que garanta a validação dos dados dos subscritores – nome completo, data de nascimento e número do bilhete de identidade ou cartão de cidadão -, mas como não há data para a criação e funcionamento dessa plataforma, o promotor da petição, Ivo Barroso, avisa que isso poderá demorar muito tempo e obrigar a que as iniciativas tenham que continuar a ser entregues em papel. Ao PÚBLICO, o socialista Pedro Delgado Alves argumenta com a falta de orçamento do Parlamento para colocar já a funcionar tal plataforma, pelo que deverá ser preciso esperar até 2017 para que isso esteja em vigor. (…)” (notícia, por MARIA LOPES).

[16] Foi constituído, em Junho de 2016, um Grupo de Trabalho para o Parlamento Digital, mediante um Despacho do Presidente da Assembleia da República, “com o objetivo de melhorar a qualidade da democracia parlamentar, através da utilização das novas tecnologias, aproximando o Parlamento dos cidadãos, comunicando mais e melhor, e colaborando com a comunidade para reforçar o escrutínio informado sobre a Assembleia da República.”.

Do mandato do Grupo de Trabalho para o Parlamento Digital, consta:

I. Avaliar a implementação dos objetivos definidos na “Declaração para a Abertura e Transparência Parlamentar”, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 64/2014; (…) III. Avaliar a possibilidade de uma maior divulgação da atividade parlamentar através de novas formas de comunicação digital, apresentando recomendações que, aproveitando as novas tecnologias, permitam alargar o universo de cidadãos que se envolvem e interagem com a Assembleia da República, fomentando a comunicação bidirecional”;

Ora, parece que estamos “sempre na mesma”, sem quaisquer progressos para a Democracia semi-directa, dado que, já na Resolução parlamentar n.º 64/2014, de 10 de Junho, preceituava já:

A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição, adotar os seguintes procedimentos: / (…) 42 — Facilitar a comunicação bidirecional. O Parlamento português está empenhado em implementar ferramentas tecnológicas interativas de forma a reforçar a capacidade dos cidadãos para proporem contribuições significativas para a legislação (…)”.

Quantos mais anos será preciso esperar para que estas declarações de intenções tenham efectividade prática?

As proclamações de intenções são de louvar ? só que não à custa da dilação da efectivação do exercício dos direitos fundamentais por parte dos cidadãos, em nome de uma solução burocrática e de um compromisso dilatório (na acepção de CARL SCHMITT, na sua Teoria da Constituição, trad. castelhana).

[17] As normas preceptivas não exequíveis por si mesmas (como as constantes dos artigos 167.º, n.º 1, da CRP, na remissão do direito fundamental de iniciativa legislativa dos cidadãos, e 115.º, n.º 2, na remissão do direito fundamental de iniciativa referendária; ambos os direitos provêem da Revisão Constitucional de 1997) constituem imposições legiferantes para a regulamentação legislativa) (JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 7.ª ed., 2013, n.º n.º 63.II, pg. 303, n.º 64.I, pg. 304). Existe inconstitucionalidade por omissão, se o Legislador não editar as necessárias normas legislativas destinadas a dar-lhes exequibilidade, num prazo razoável (n.º 65. IV, pg. 310); prazo esse que, neste caso, é violado.

As normas aludidas têm aplicabilidade directa e vinculam o Legislador (art. 18.º, n.º 1, 1.º e 2.º incisos, da CRP), pois:

i) Proíbem a prática de comportamentos que tendam a impedir a produção dos actos por elas impostas;

ii) Fixam critérios para o legislador nos domínios sobre os quais versam; pois, como refere HANS KELSEN, excluem leis ordinárias com determinado conteúdo, “sob o pressuposto de que a simples lei não tenha força para derrogar a lei constitucional que determina a sua produção e o seu conteúdo” (KELSEN, Teoria Pura do Direito, trad., Coimbra Editora, V, 35. a, pg. 312.), sob pena de inconstitucionalidade material, quando haja afastamento daqueles critérios (JORGE MIRANDA, Manual…, II, 7.ª ed., n.º 65.II, pg. 309; IDEM, Teoria do Estado..., pg. 647; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pg. 1320): não pode haver uma "fuga" para a lei ordinária, em detrimento da Constituição, sob pena de perigo de uma inversão da hierarquia normativa (GOMES CANOTILHO, Constituição dirigente..., 2.ª ed., pg. 403; PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, pg. 567).

iii) Estão sujeitas ao regime material das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, por extensão do art. 17.º; de onde decorre que as normas legais devem ser proporcionadas e não afectar o conteúdo essencial do direito fundamental (na senda da Lei Fundamental de Bona de 1949; da construção de KONRAD HESSE acerca da «força normativa da Constituição; já neste sentido, durante o Estado Novo, AFONSO R. QUEIRÓ / BARBOSA DE MELO, A liberdade de empresa e a Constituição. (A propósito do Dec.-lei. n.º 47 420, de 6 de Outubro de 1966), in RDES, ano XIV, Julho-Dez. de 1967, n. 3-4, pgs. 221-222; JORGE MIRANDA, Inviolabilidade do domicílio, in RDES, 1974, pgs. 414-415; IDEM, Direitos fundamentais e ordem social (na Constituição de 1933) (Título V da Parte II (Direito Constitucional Anual) de Ciência Política e Direito Constitucional, sumários policopiados, FDUL, 1973, pp. 181 ss.), republicado in Revista da FDUL, vol. XLVI, n.º 1, 2005, pg. 302; cfr. IDEM, Liberdade de reunião, 1971, pgs. 268 e 270; e MIGUEL GALVÃO TELLES, Sumários…, 1970/1971).

Os direitos de liberdade não podem ser fórmulas vazias (GOMES CANOTILHO, Teoria da Constituição de 1976: desenvolvimento ou revisionismo constitucional?, in IDEM, “Brancosos” e interconstitucionalidade. Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional, 1.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pg. 86), “garantias meramente aparentes”, que seriam dependentes da “boa vontade” do Legislador (cfr. KELSEN, Teoria Pura do Direito, IV, 29. f, pg. 205).

E, sobretudo, os direitos, liberdades e garantias devem ser efectivas.

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