Banco público de sangue do cordão umbilical ainda não chegou às 500 amostras

Especialistas dizem que silêncio do Estado sobre criopreservação das células estaminais é cedência aos bancos de criopreservação privados. Em Portugal, há laboratórios e empresas com milhares de amostras. Custam cerca de 1500 euros cada. Ao fim de sete anos, o banco público tem apenas 463 amostras.

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Portugal tem seis laboratórios privados Reuters

Quando uma das grávidas que passam pelo consultório de Miguel Oliveira e Silva lhe pergunta se deve criopreservar o sangue do cordão umbilical do seu bebé, o obstetra diz que não consegue disfarçar a angústia. “Se lhe digo que deve ir ao banco público - que acho que é o que se deve fazer, porque as amostras ficam ao serviço de todos - tenho que lhe dizer também que o banco do Estado não funciona. Se ela me diz que está disposta a fazê-lo num banco privado, alerto-a que muito do que se escreve na publicidade destes laboratórios é mentira e que a probabilidade de o seu bebé vir a precisar das células é de uma em 20 mil”.

Sete anos depois de ter sido criado, o banco público, cujas amostras de células estaminais do sangue do cordão umbilical são colhidas de forma gratuita para serem utilizadas por qualquer doente que precise, continua aos solavancos. Não chega ainda às 500 amostras criopreservadas, segundo adiantou ao PÚBLICO a entidade que tutela o serviço, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST). Enquanto isso, os bancos privados, nos quais as famílias pagam entre 1000 e 2400 euros para assegurarem a criopreservação do sangue e do tecido do cordão dos seus bebés para uso próprio ou familiar, multiplicam-se. O PÚBLICO contou seis empresas com bancos de criopreservação em Portugal. Juntas, somam milhares de amostras. A esta lista, somam-se ainda pelo menos mais três empresas comerciais que recolhem amostras de células estaminais no mercado português mas que recorrem depois a laboratórios localizados no estrangeiro ou pertencentes a outras empresas.

Em comum, os bancos privados têm o recurso a estratégias de marketing “agressivas e pouco transparentes” e assentes em promessas “de aplicações irrazoáveis”, conforme se lê no parecer que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu sobre os bancos de sangue e tecido do cordão umbilical. No mesmo documento, este organismo defende a necessidade de “dotar o banco público dos meios necessários para testar, processar e conservar as células derivadas”, de forma a “manter um sistema de qualidade e a sua ligação às redes europeias e internacionais”. Miguel Oliveira e Silva foi, até ao ano passado, presidente do CNECV. Garante que o parecer emitido em 2012 continua muito actual. E lamenta que, quatro anos depois, o Governo nada tenha feito. “Anda tudo silencioso há demasiados anos. E com isto deixa-se que impere a lei do marketing destes laboratórios privados que acenam com hipóteses mirabolantes de utilização remota e que criam uma culpabilidade nas grávidas que não recolhem o sangue do cordão umbilical. O Ministério da Saúde, ou a Direcção-Geral da Saúde, deviam ter a coragem de pegar no parecer do CNECV e fazer um guideline sobre isso, tal como faz sobre o iodo, o ferro ou as ecografias na gravidez”, acusa. Para Miguel Oliveira e Silva, o Estado, que “tem a obrigação de vigiar e moralizar isto, não faz nada, zero”. E por que é que assim é? “Porque são laboratórios poderosíssimos e muita gente depende deles, directa ou indirectamente. Fica tudo caladinho”.

Em Outubro de 2012, data em que o parecer do CNEVC foi emitido, já os bancos privados de criopreservação das células estaminais beneficiavam da confusão em que se arrastava o banco público, o Lusocord. Das 28.500 amostras de células do cordão umbilical recolhidas deste que o banco fora criado, em 2009, apenas oito mil tinham sido criopreservadas. Mais de 70% tinham sido desaproveitadas. E a taxa de reprovação das amostras fora (juntamente com alegadas desconformidades na colheita das amostras e irregularidades do foro financeiro) um dos motivos para a suspensão da actividade do banco, com a promessa da sua reactivação dentro de poucos meses, mas já sob alçada do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST).

Antes de ser afastada do cargo, a então directora do Lusocord, Helena Alves, acusou o Governo de ter deliberadamente asfixiado o banco público. Em 2011, por exemplo, dos dois milhões de euros previstos no orçamento, o banco público recebera apenas 500 mil. E nunca o banco pudera contratar os técnicos necessários para analisar a qualidade das amostras doadas e introduzi-las nas bases de dados internacionais. E assim era impossível vender amostras aos parceiros internacionais, o que ajudaria a tornar o banco sustentável financeiramente, dado que as amostras utilizadas são pagas pelos hospitais. Nas contas feitas então por Helena Alves, com uma venda de 30 a 40 amostras por ano, o banco teria um encaixe financeiro anual na ordem dos 800 mil euros. A polémica motivou audições parlamentares, nas quais Helena Alves denunciou que empresas privadas estariam a pagar entre 800 a 1000 euros/mês a profissionais de saúde de hospitais públicos para que promovessem os seus serviços, em detrimento do incentivo à doação para o banco público. Hoje, Helena Alves remete-se ao silêncio. E da investigação que a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) prometeu então instaurar não se conhecem quaisquer conclusões.

Desperdício chega aos 85%

Em Janeiro de 2013, o presidente do IPST e novo responsável do Lusocord, Hélder Trindade, anunciou, numa entrevista ao Diário de Notícias, que o banco público tinha reaberto. O objectivo então era a acreditação internacional e ter, até ao final desse ano, quinhentas amostras validadas, isto é, “aptas a serem utilizadas e administradas a um doente, em Portugal ou em qualquer parte do mundo”. Em Fevereiro de 2015, ao semanário Expresso, Hélder Trindade apontava 1124 amostras colhidas, das quais 289 com qualidade para criopreservar. O objectivo mantinha-se o mesmo de dois anos antes: conseguir somar 500 amostras criopreservadas para pedir a certificação internacional.

Esta semana, em resposta escrita às perguntas do PÚBLICO, o presidente do IPST esclareceu que, a Norte, o Lusocord está a colher amostras no Hospital de S. João, no Centro Hospitalar do Porto e no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos. E o IPST já preparou a equipa de colheitas no Hospital Amadora-Sintra, “a fim de se procurar uma maior diversidade genética e, como tal, uma maior rentabilização do banco público do cordão”.

Quantos aos números, até ao dia 31 de Maio, tinham sido colhidas 3122 amostras de sangue do cordão umbilical, das quais 463 foram criopreservadas. Na informação fornecida ao PÚBLICO não consta a data de início das colheitas. Nem se esclarece se estas amostras incluem colheitas realizadas pela anterior direcção do Lusocord, que deixou oito mil amostras criopreservadas. O próprio Hélder Trindade afirmou, na mesma entrevista ao Diário de Notícias, que, das oito mil amostras criopreservadas que “herdou”, três mil estavam contaminadas e as restantes cinco mil teriam de ser validadas uma a uma. Apesar da insistência do PÚBLICO, o IPST não esclareceu quantas destas integram o lote das 463 amostras actualmente disponíveis.  

Seja como for, resulta claro que, segundo as contas do próprio IPTS, a actual taxa de aproveitamento é de 14,8%, ou, ao contrário, 85% das amostras foram deitadas fora. É uma taxa de reprovação acima daquela que foi aduzida como um dos argumentos que ajudaram a legitimar o afastamento da anterior directora e que rondaria os 70%, então considerada “muito alta” por Hélder Trindade. O cenário piora, se nos ativermos apenas aos números de 2016. Das 704 amostras colhidas até agora neste ano, foram criopreservadas 43. Dá uma taxa de aproveitamento de apenas 6%.

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Tratamento de criopreservação Fernando Veludo

O despacho que define a criação do banco estima uma taxa de aproveitamento das doações de 50%. “Neste momento, e conforme acontece noutros países, apenas são criopreservadas amostras com número de células superior a 1,8x106, pois com números inferiores as unidades de transplantação não requisitam células. A taxa de aproveitamento é semelhante à que ocorre noutros bancos públicos com as mesmas exigências de segurança e qualidade e ronda os 10 a 11% das colheitas”, justificam os responsáveis do IPST.

O ex-presidente do CNECV Miguel Oliveira e Silva não precisou de olhar para estes números para dizer que o banco público “está a funcionar muitíssimo mal”. “Há insuficiências que se arrastam há anos, o que é objectivamente uma forma, creio que involuntária, de favorecer os privados. Se o banco do Estado funcionasse bem, os privados não poderiam fazer a propaganda que fazem, quase culpabilizando a grávida que não paga para criopreservar o sangue”, insiste.

O actual presidente do CNECV, João Lobo Antunes, concorda com o seu antecessor. E, em resposta escrita ao PÚBLICO, remete-se ao parecer de 2012 para reiterar que os bancos privados propagandeiam promessas de aplicações das células estaminais “muitas vezes irrazoáveis”. Exemplo? “O tratamento de doenças comuns da vida adulta, quando a conservação se faz a 20-25 anos”. Daí a necessidade de verificar que “as reivindicações de aplicações terapêuticas publicitadas têm validade e utilidade clínica comprovadas”, bem como de “regular e fiscalizar as actividades dos bancos operando em cada um dos Estados e verificar o cumprimento dos padrões internacionais de qualidade”. É que “os bancos privados competem com os públicos pelas mesmas amostras”. E, conclui dizendo que “mais do que dois modelos económicos diversos”, os dois tipos de bancos “oferecem serviços de saúde que não são os mesmos e têm uma valoração ética muito diferente”.

No seu consultório, o obstetra Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, diz sofrer angústias semelhantes às de Miguel Oliveira e Silva. “Nunca me recusei a fazer uma colheita”, ressalva. “Mas quando as doentes me perguntam, digo logo que tenho quatro netos e que o meu filho é pediatra e nenhum deles fez colheita de células estaminais”. Defensor de um banco público, “em que as células estaminais poderão servir para qualquer eventualidade futura, seja quem for a criança”, Graça lamenta que os laboratórios privados tenham transformado a recolha de células estaminais num negócio. “As pessoas devem fazer seguros para riscos concretos, não para riscos putativos, principalmente quando temos a alternativa dos bancos públicos de células estaminais espalhados por todo o mundo, a maior parte dos quais fornece células para diferentes receptores sem cobrar nada ao doente”. Luís Graça foi, até há pouco tempo, director do departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução do Hospital Santa Maria e notou uma diminuição do número de grávidas que ali chegavam com o kit para fazer a recolha do cordão umbilical. “E mesmo na clínica privada quase todas punham a questão e agora isso já não acontece tanto”.

O PÚBLICO tentou, ao longo de toda a semana passada, saber junto do Ministério da Saúde, da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e do IPTS, qual a dotação financeira do Lusocord e como se compõe actualmente a sua equipa, mas as perguntas ficaram sem resposta. Do mesmo modo, a IGAS nada disse sobre a investigação que terá sido feito para averiguar o alegado pagamento de empresas privadas aos profissionais de saúde que andariam a promover os seus serviços nos hospitais públicos. 

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