Na fila dos gelados

A Karrada já foi demasiadas vezes cenário de carnificina sem nunca deixar de se encher ao cair da noite.

Em todo o lado é em todo o lado e é mesmo em todo o lado. Istambul, Daca, Bagdad. Não sabemos como se chamavam, podíamos saber. Terça-feira, sexta-feira, sábado à noite. Nem uma semana, três atentados, 195 mortos, muitas, muitas crianças.

Sábado, final de um dia de mais de 40 graus numa cidade onde a electricidade é escassa e o fresco só chega com o pôr-do-sol. Numa cidade de sete milhões a tentar viver sabendo que podem morrer de tudo e por tudo, em qualquer dia, há demasiados dias. Na fila dos gelados, há lá melhor maneira de assinalar a quebra de jejum do fim do Ramadão, na esplanada com os amigos a ver os quartos-de-final do Euro 2016.

Pelo menos 130 pessoas morreram na Karrada, famílias inteiras, crianças de mão dada. A carrinha armadilhada explodiu em frente da geladaria mais popular e antiga da capital do Iraque. Na minha rua preferida, espécie de Istiklal (a grande rua do centro de Istambul onde a vida nunca pede licença para acontecer) árabe da diversão que começa com o cair da noite e quando as lojas se fecham se improvisam nos passeios bancas de brinquedos, sumos frescos e doces de comer e chorar por mais.

A Bagdad da Karrada é a Bagdad que nunca dorme e há poucas cidades onde a expressão faça mesmo sentido. Bagdad é uma delas, Istambul é outra. Com ou sem recolher obrigatório – acabou em Fevereiro do ano passado, 12 anos depois de ser decretado, e sem nunca ter sido cumprido com rigor. 

Afinal, quando o dia é insuportável é de noite que se vive. Afinal, onde todos os dias podem mesmo ser o último é que não se desperdiçam sorrisos nem gelados ou noites quentes que assinalam o começo do dia. A Karrada já foi demasiadas vezes cenário de carnificina sem nunca deixar de se encher ao cair da noite. Na Karrada, morre-se a festejar estar-se vivo. Na fila dos gelados.

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