Como a ideologia agarrou Michael Cimino

Era uma vez uma época politicamente tensa e colectivamente ferida.

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O Caçador: uma grande força divisória
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Coming Home de Hal Ashby, um filme para "abraçar", para unir

Quase cem anos depois, devemos deitar fora O Lírio Quebrado de Griffith, um dos mais sublimes melodramas da história, por causa da representação estereotipada das personagens asiáticas? E, quase quarenta anos depois, ainda há quem queira atirar todo O Caçador para o caixote do lixo "fascista" por causa da representação estereotipada dos vietcongs? Era simpático, e certamente mais confortável, se todas as obras primas se relacionassem de forma lisa com a correcção política, e se os seus autores fossem modelos de virtude intelectual imaculada. Mas dá-se o caso de raramente ser assim, e por certo que não o era no caso de Cimino - como não o era no caso de Griffith, como não o era no caso de John Ford, os cineastas que o gesto do autor de As Portas do Paraíso perseguia e prosseguia. Ele próprio costumava furtar-se às questões políticas, em entrevistas, declarando-se "fora da ideologia", o que não é necessariamente uma expressão feliz, mas até nesse fundo de ingenuidade ressalta a preponderância dum instinto, aquele mesmo instinto dos grandes pioneiros, complexo e contraditório, por certo não 100% "aceitável", que se manifestava em pleno com uma câmara, com o cinema, e não perante os microfones dos críticos e dos jornalistas.

Cimino era desta estirpe. E, com Coppola, o último grande "ingénuo" idealista do cinema americano - ambos se queimaram ao mesmo tempo, Cimino em 1980 com As Portas do Paraíso, Coppola dois anos depois com Do Fundo do Coração. Sem um grama do cinismo de Spielberg ou Lucas (os grandes triunfadores da geração dos anos 1970, que impuseram o onanismo adolescente como principal vector da indústria), Cimino nunca mais se conseguiu realmente levantar, acumulou insucessos atrás de insucessos, ouviu disparates atrás de disparates (ainda há listas dos "piores filmes de sempre" que incluem As Portas do Paraíso, valha-nos Deus), mas continuava a pensar em projectos que porventura só ele acreditava que um dia seriam concretizados. Quando esteve em Lisboa em 2005, convidado pela Cinemateca, ainda falava com entusiasmo de uma velha ideia, uma adaptação da Condição Humana de Malraux; e uns anos antes também passara por Lisboa, envolvido noutro projecto grandioso que nunca aconteceu, sobre a época dos Descobrimentos. Esta sucessão de ideias abortadas, esta megalomania talvez não muito consciente de si própria mas feroz e determinada, lembra outro cineasta que também passou do máximo da glória hollywoodiana à condição de pária de Hollywood: Orson Welles, claro. Também era desta estirpe, Cimino. E se a carreira de Welles, pese a amargura de se ter tornado um cineasta "exilado", continuou por muitos anos graças à Europa, a Europa nunca foi, sinal dos tempos, um porto de abrigo para Cimino. A sua carreira fechou-se discretamente em 1996, com Sunchaser, que mal teve carreira em sala, um filme fascinado pela origem miscigenada e heteróclita da América, e em particular sobre a cultura nativa-americana. Nada mau, ainda assim, para um "racista".

Para compreender essa fama é preciso fazer um esforço para voltar ao tempo de O Caçador, à época politicamente tensa e colectivamente ferida que foi o imediato pós-Vietname. Ainda assim, num filme onde a guerra é o horror absoluto, onde a carne para canhão são os operários, os imigrantes e os filhos dos imigrantes, onde o triunfalismo do God Bless America é um trompe l'oeil porque esse momento é duma tristeza e dum luto interminaveis, custa a perceber proclamações como a de Peter Biskind, que na altura escrevia (com ironia não isenta de admiração, mas sabendo o alcance do que escrevia) a propósito de O Caçador que o cinema americano "tinha finalmente a sua Leni Riefenstahl". A ambiguidade conservadora, "griffithiana", "fordiana", de Cimino, a tocar o fundamento telúrico da psique nacional americana, facilmente ocupava o dark side - o "lado claro" era o do outro filme de 1978 sobre o Vietname, o Coming Home de Hal Ashby, com Jane Fonda (ela própria a fazer as pazes com o tempo em que ficou conhecida por "Hanoi Jane"), filme sobre o regresso dos soldados estropiados e perturbados pela experiência da guerra. Um filme para "abraçar", para unir, que se defrontou com essa grande força divisória que era O Caçador, assim corporizando um choque entre os pólos "liberal" e "conservador" do cinema americano, vivido intensamente e gerador de acrimónias que nunca mais se resolveram.

Coming Home não é mau, mas quando o vemos hoje vemos só aquilo que ele é exactamente: um filme sobre o regresso dos soldados e a impreparação da sociedade americana para lidar com as suas próprias vítimas de guerra. Quando vemos O Caçador esquecemos o Vietname, esquecemos o tempo, esquecemos a época, vemos algo que é indefinível, que é profundo, que ultrapassa as circunstâncias. Cimino bem disse que "isto não é um filme sobre o Vietname".

Mas a reputação ficou, e já ninguém se lembra que no filme seguinte, As Portas do Paraíso, foram os sectores conservadores que cairam em cima dele, acusando o filme de "anti-americanismo". Chatear toda a gente: também é uma boa maneira de aferir a grandeza de um cineasta.

 

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