Regressar é uma palavra tão bonita quanto sofrida

Quantos frigoríficos, colchões, mesas e fogões já passaram pela minha vida? Quantas salas vazias voltarei a rever no meu filme particular? Espero que muitas. “Isso para mim é viver”

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Lizzie Guilbert/Unsplash

Quando estava à espera do proprietário do apartamento que alugava em Luanda, para finalmente entregar-lhe as chaves do imóvel, vi-me sentada a trabalhar no último banco que restava naquela sala vazia. Esta era uma imagem que remetia para o “déjà vu” da minha vida: desmonta mobília, faz as malas, separa o que não cabe na bagagem, móveis vendidos, desapego e até logo.

Depois de uma década entre idas e vindas entre Portugal, Angola e Moçambique, várias casas, grandes projectos e muitos amigos, os dias urgiam em me avisar que tinha chegado a hora de inverter os ciclos. Precisava de um pouso em Portugal para me reciclar pessoal e profissionalmente, mas precisava, principalmente, de desfrutar de tempo. A partir de uma certa idade aprendi que regressar é uma palavra tão bonita quanto sofrida. Mas, ao mesmo tempo, também compreendi que sem este semi-luto não há garra para os próximos desafios.

Parece que em Luanda o relógio engole as horas e falta sempre tempo para gerir a nossa semana. O passar dos minutos corre estranhamente da forma que o relógio quer e deseja. Não sei se ele bebe Cuca ou sumo de maracujá, mas até o não fazer nada é impossível. Eram tantas horas de trabalho, filas perdidas no transito, em reuniões, que passavam semanas e eu não conseguia terminar o capítulo de um livro ou uma série de TV em casa. Pouco. Poderia ter-se iniciado uma nova guerra mundial e eu teria a sensação de ser a última a ser avisada.

Por outro lado, só quem morou em Luanda consegue descrever, parafraseando Caetano Veloso, “a dor e a delícia de ser o que é...”. No meio da confusão, vivemos felizes a nossa segunda adolescência, só que com mais alguns trocos no bolso. Trabalhamos com níveis incríveis de stress, com os problemas mais insólitos que se podem imaginar e com uma desigualdade social que nos vai tirando uma lasquinha de vida a cada esquina. Mas somos gratos todos os dias ao país que nos acolheu. Reclamamos do óbvio, mas sorrimos nos finais de semana quando nos deitamos na areia quente que massaja a vida até chegar a segunda-feira.

Lembro-me que ao descer as últimas malas pela porta da frente do prédio, os zeladores, os meninos que guardam os carros na rua e as zungueiras que vendem fruta à porta, juntaram-se e vieram todos perguntar porque eu ia embora. Com o coração apertado, falei a verdade, mas disse que voltava. Como digo a todos, sempre volto para onde gosto e onde fiz a minha vida. E, ainda por cima, como não amar um lugar no qual os mais estranhos lhe reconhecem? Eu fazia parte daquele cenário e nem tinha a noção. Enquanto isso, por cá os nossos vizinhos da frente nem sempre sabem quem somos.

E agora, no regresso, é como se um voo de oito horas e apenas uma hora de fuso horário nos tivesse trazido de volta para um mundo novo. O nosso “Truman Show” acabou. A Amélia, que cuidava de mim como irmã, deixou de fazer parte do dia-a -dia. Já não tem a salada de Mufete nem a banana-pão ao almoco. Já não saio com os olhos vidrados nas janelas do carro para ver as cores vivas da cidade, já não reclamo do trânsito; a falta de água não é tema de conversa, tampouco a falta de luz, a violência, a situação dos hospitais... Na verdade, agora reclamo que me faltam temas diários para reclamar. Relativizamos a importância da vida e chegamos a conclusão que viver aqui é tão normal... há uma grande tristeza nisso. Mas existem compensações, é claro.

Daí volto a perguntar: quantos frigoríficos, colchões, mesas e fogões já passaram pela minha vida? Quantas salas vazias voltarei a rever no meu filme particular? Espero que muitas. “Isso para mim é viver”. Desculpa Caetano. Obrigada Angola.

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