Vida gay dos anos 70 não foi apenas sexo
Em Portugal o discurso sobre os homossexuais e outras minorias sexuais e de género tende a ser pobre em pluralismo, Nos EUA são incontáveis os contributos para uma debate democrático. Stand by Me é um bom exemplo dessa realidade que ainda nos é tão distante.
É simplista supor que os homossexuais norte-americanos dos anos 70 viviam a pensar em sexo, noite, sauna e praia, narrativa surgida na década seguinte perante a epidemia da sida, maneira rápida e preconceituosa de explicar que as principais vítimas do VIH tenham sido homossexuais.
Eis a tese de Jim Downs em Stand by Me: The Forgotten History of Gay Liberation, aparentemente próxima do discurso que sectores LGBT proferem há talvez duas décadas, segundo o qual a sexualidade deve ser apresentada como aspecto secundário da vida dos homossexuais para que estes simbolicamente se aproximem da suposta sexualidade contida dos heterossexuais e sejam reconhecidos como capazes de aceder ao casamento e à adoção. Aparenta, mas não está próxima.
“Ao defender que o sexo não foi decisivo na vida gay, espero que este livro não seja entendido como uma história asséptica dos anos 70”, justifica Downs na conclusão. “Não há dúvida de que o sexo teve influência e importância para as pessoas gay, naquela década, mas não era a única coisa que lhes interessava, como diz a narrativa que herdámos” (p. 195).
O livro surge, assim, como objecto contra-corrente. Esforça-se por desmontar a versão que o activista e escritor Larry Kramer ajudou a fazer vingar, primeiro com o livro Faggots (1978), depois com intervenções inflamadas ao longo das décadas de 80 e 90, de que a promiscuidade sexual dos homossexuais e a alegada incapacidade para manterem relacionamentos estáveis teria sido determinante para que a sida se tornasse epidémica.
De forma velada, instala uma pergunta que merece vários volumes e poderia ser assim formulada: porque é que os actos sexuais, a maneira como são feitos, a frequência e os locais onde se praticam, são aspectos considerados relevantes quando se fala de homossexualidade?
Jim Downs, agora em licença sabática, professor de História e de Estudos Americanos na Connecticut College desde 2006, é académico no método, apresentando escassas fontes testemunhais (uma, por certo, as outras não são óbvias). Optou por documentos escritos, nomeadamente imprensa da época que encontrou nos arquivos dos centros comunitários LGBT de Filadélfia e Nova Iorque e na Biblioteca Pública de Nova Iorque.
“Toda a história é política, tendemos a construir, no presente, um passado ao serviço de uma agenda ideológica concreta”, recorda a introdução. “Fui aos arquivos e tirei notas. Quis documentar os episódios desconhecidos que constituem a libertação gay. Quis contar histórias surpreendentes de pessoas homossexuais que construíram igrejas, fundaram jornais, abriram livrarias e repensaram o significado da identidade gay. Quis mostrar que a década de 70 foi mais do que uma noite na sauna” (p. 6). E insiste: “O sexo foi apenas uma parte do que aconteceu”.
O texto divide-se por sete capítulos, os mais interessantes dos quais versam a presença de gays em igrejas e comunidades católicas; o nascimento da livraria Oscar Wilde Memorial, em 1967, em Nova Iorque; e a cultura da imprensa de nicho, com destaque para a revista The Body Politic, editada entre 1971 e 1987.
O primeiro capítulo é dedicado a um episódio que teve lugar a 24 de Junho de 1973, em Nova Orleães, quando um desconhecido ateou fogo ao bar Up Stairs Lounge, onde habitualmente se juntavam dezenas de homossexuais em comunhão religiosa, sob orientação do reverendo William Larson (a imprensa da época falava em bar queer, palavra que então significava “maricas”). Naquele dia estavam 120 pessoas reunidas para assinalar a Revolta de Stonewall, acontecimento de 1969, em Nova Iorque, que se estabeleceu como início do movimento LGBT actual. As chamas lavraram com fúria e pelos menos 27 fiéis ficaram encurralados no bar, morrendo carbonizados, intoxicados ou espezinhados. O autor chama-lhe “o maior massacre de homossexuais na história americana” e adiciona pormenores, incluindo a identidade de algumas vítimas. Nunca se soube quem ateou o fogo.
No capítulo 2, prossegue o retrato das comunidades de católicos, protestantes e judeus que se organizaram em Atlanta, Nova Iorque, Los Angeles, Santa Monica, Nashville, São Francisco, etc., constituídas em oposição às hierarquias oficiais que não reconheciam os homossexuais como fiéis.
“A religião era, e continua a ser, usada atacar a homossexualidade, mas ajudou muitos gays nos anos 70 a aprenderem a aceitar a sua sexualidade e a sentirem-se confortáveis como parte da sociedade” (p.44), lê-se. No fim da década, tais congregações “tinham alcançado bastante visibilidade pública”.
Dissidentes religiosos, estes homossexuais “queriam ter acesso a outros rituais, sobretudo o casamento”, garante o autor. “Ainda que estivesse proibido, o casamento gay desenvolveu-se como ritual comum na década de 70 em igrejas e sinagogas um pouco por todo o país, tornando-se símbolo dessa nova cultura dos gays americanos” (p. 47).
Esta faceta terá sido esquecida pelos primeiros historiadores e escritores que se debruçaram sobre aquele período porque, de acordo com Down, muitos provinham da esquerda e olhavam a religião como fonte de opressão das minorias sexuais.
Ao dar outros exemplos de actividades artísticas e jornalísticas, actos militantes e acontecimentos públicos organizados por gays e lésbicas, o autor pretende demonstrar a tese de partida. No caso da livraria Oscar Wilde Memorial, a que dedica o capítulo 3, fica-se a conhecer um episódio curioso (p.74). Por algum tempo, o fundador da livraria, Craig Rodwell, namorou um homem que conhecera junto ao Central Park, tendo a relação acabado quando este descobriu que Rodwell o tinha contagiado com gonorreia, o que significava que a relação não era monogâmica. O homem trabalhava em Wall Street e tinha uma ideologia conservadora. Chamava-se Harvey Milk. Depois da separação, Milk foi viver para São Francisco, tornou-se activista, passou a pensar à esquerda e tornou-se um dos principais líderes do movimento LGBT norte-americano (Gus van Sant dedicou-lhe o filme biográfico “Milk”, em 2008).
O autor reforça: se hoje temos ideia de que os homossexuais estão em constante protesto, em manifestações e militâncias contra o Estado, um olhar cuidadoso sobre o que se passou há mais de 40 anos demonstra que “muitos gays procuravam sentido comunitário e um discurso cultural próprio, mais do que direitos legais ou reconhecimento político” (p.14).
Muito circunstanciado, com datas, nomes e locais, Stand by Me acaba por cair na repetição de ideias, às vezes com frases idênticas num mesmo capítulo. Tenha sido falha da edição ou escolha deliberada, é desnecessário, porque repisar argumentos resulta bem no discurso oral, não no escrito.
Outros dois pequenos problemas: um formal, outro de conteúdo. Primeiro, a inclusão de notas no fim do livro, e não em rodapé, como se fosse boa a experiência de interromper a leitura para consultar notas que se estendem por 40 páginas. Segundo, o autor refere, de passagem, que até àquela década a Biblioteca do Congresso (a biblioteca nacional dos EUA) catalogava o tema “homossexualidade” sob a categoria “crimininalidade e anomalias clínicas” (p. 69), mas parece ter esquecido a retirada da homossexualidade do catálogo de doenças mentais da Associação Americana de Psiquiatria, em 1973, o que constitui uma das mais importantes mudanças de paradigma nesta matéria e ajuda a explicar a força que o movimento LGBT então ganhou.
Se em Portugal o discurso sobre os homossexuais e outras minorias sexuais e de género tende a ser pobre em pluralismo, circunscrevendo-se, mesmo com a internet, a uma ou duas correntes de opinião semelhantes e prescritivas, nos EUA são incontáveis as vozes e os contributos para uma debate democrático, com vivacidade de argumentos e pontos de vista. Stand by Me é um bom exemplo dessa realidade que ainda nos é tão distante.