A Olga de Tchékhov como um hamster numa roda

No capítulo final da sua visitação faseada às Três Irmãs de Tchékhov, Cátia Terrinca estreia Olga, um percurso pela evolução do trabalho ao longo do século XX.

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JOÃO P NUNES

Olga, uma das Três Irmãs de Tchékhov, está presa numa sala de aulas de uma escola primária. Mais do que à sala, na verdade, está presa ao seu trabalho de professora. Mais do que presa, de facto, está condenada a esse trabalho. De 20 a 26 de Junho, na sua visitação final ao texto do dramaturgo russo  que fez decompor em três peças distintas escritas por Luísa Monteiro, Valério Romão e Rui Pina Coelho , Cátia Terrinca encarna a mais velha das três irmãs na Escola Básica nº 60, em Lisboa, transformada em símbolo de um percurso pela evolução do trabalho ao longo do século XX, e do modo "como este foi tomando conta da vida das pessoas até as descaracterizar, ou as caracterizar como se caracterizam as máquinas”.

Há dois anos que Cátia Terrinca vive com esta vontade de abordar Irina, Macha e Olga de acordo com “um entendimento conceptual de que as três são uma mesma personagem que vai envelhecendo”. Após a perda de financiamento de um festival que lhe permitiria colocar em sequência as três visões distintas para cada uma das personagens, a actriz e encenadora (que partilha a direcção do projecto com Francisco Salgado) pensou em associar a passagem do tempo a diferentes estações do ano, autonomizando totalmente as três personagens mas jogando com um processo cumulativo. Assim, a passagem em Dezembro por Irina e a paragem em Março em Macha levaram-na a chegar a “algumas conclusões, ainda que sempre provisórias e escritas a lápis, e a edificar por cima outra irmã – acabam por formar um palimpsesto de ideias”.

Assumindo que este método a centra mais nas diferenças do que nas semelhanças entre as três irmãs, Cátia Terrinca reconhece que o contexto levou à criação de outros tantos espectáculos vincadamente singulares – e o facto de ter escolhido locais e autores distintos para trabalhar cada um dos textos reforçou essas diferenças. “Houve uma forte relação autor-espaço-personagem. Eles construíram muito cada texto em função do espaço, porque todos escreveram propositadamente para este projecto. Quisemos associar a cada uma das irmãs autores com linguagens e relações diferentes com o Tchékhov e propor-lhes um espaço para que o texto ganhasse fôlego.”

Trabalho e tortura

O fôlego de Olga manifesta-se primeiro através de uma prédica sobre a etimologia da palavra “trabalho”, clarificando a sua origem na ideia de tortura. O vocábulo latino tripalium daria origem tanto à designação de um popular instrumento de tortura romano (tripálio), quanto à noção que hoje temos da ocupação profissional de cada um. Através do texto de Rui Pina Coelho, e de citações de Anselm Jappe, a organização da sociedade capitalista em torno do trabalho vai sendo escalpelizada por Olga, fazendo correr em paralelo a ideia do seu envelhecimento e respectiva caminhada lenta para a morte – já com mais passado do que futuro, de olhos postos na culpa e no arrependimento. A sensação acre de derrota por ter dedicado os seus dias ao trabalho, por ter gastado a sua vida em algo que não quis verdadeiramente, pesa decisivamente sobre a personagem.

Recue-se entâo até à mais jovem das três irmãs imaginadas por Tchékhov num dos textos fundadores do teatro moderno, escrito em 1900 e estreado em Moscovo no ano seguinte. Irina é a mulher esperançosa, de ideias e sonhos a transbordar, extasiada com a imagem de futuro que pretende perseguir. A irmã do meio, Macha, acredita Cátia, entregando-se a um casamento que a poupa ao trabalho, “foi destruída pela burguesia” e viu as suas emoções serem anestesiadas.

Por ter assumido cada uma de forma autónoma, a actriz sente “um movimento geral” à medida que avança de Irina até Olga: “Baixa a esperança e sobe a ironia.” Por estes dias, a actriz espera ainda uma revelação essencial que só se completa nas apresentações dos espectáculos: perceber o que transita de cada uma das irmãs quando avança para a seguinte.

O certo é que esta Olga se divide em dois actos, com a personagem a engordar consideravelmente do primeiro para o segundo, tornando-se cada vez mais animal. Um animal domesticado, entenda-se, treinado para comer sempre do mesmo prato e aceitar essa rotina e a fatalidade do destino como inevitáveis. “Este é um texto muito irónico e muito provocador, de alguém que ganhou uma lucidez sobre a sua tarefa da vida inteira”, comenta Cátia. “Há essa caminhada quase fatal, e da qual ela se apercebe. E isso é que é dramático. Quando tanto a vida quanto a morte são inevitáveis, ficamos numa situação estranha. É como estar vivo, mas em coma – sinto que é essa a situação da Olga, entregue a uma aparente e estranhíssima normalidade.”

Se a instalação do tédio e a miragem constantemente adiada da ida para Moscovo atravessam todo o texto de Tchékhov, aqui esse espaço do tédio é ocupado pelo trabalho enquanto alavanca de suspensão da vontade. Um pouco como a roda dos hamsters. Cátia e Francisco andaram fixados nesta imagem desde o início, viram documentários sobre a síndrome de cativeiro nos animais para entrar no ambiente que queriam e, por fim, largaram Olga como um hamster repentinamente livre. Por mais que seja devolvido ao habitat natural, tenderá sempre a reproduzir a vida dentro da jaula.

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