Orlando: os radicalismos intemporais

O ódio é o exemplo de como uma maioria volta as costas a uma “minoria” com a qual não se preocupa ou então não quer integrar, não apenas daquele que consuma o ato

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Steve Nesius/Reuters

A cidade de Orlando, onde 50 pessoas foram mortas e 53 ficaram feridas tem, por triste coincidência, o mesmo nome de um dos maiores romances do século XX. Escrito por Virginia Woolf, “Orlando: Uma Biografia” retrata a história de uma pessoa imortal. Sim, “pessoa” é a palavra correta porque não podemos identificar Orlando com um determinado género, orientação sexual, religião ou até nacionalidade, todos eles serão mutáveis com o passar de páginas. Orlando simboliza um espírito livre de pré-conceitos, de amarras e de dogmas, assim como a fé, porque quando acreditamos em algo que tem por base o amor e a fraternidade, nunca poderemos espalhar o terror.

Orlando, graças à sua imortalidade, consegue viajar e acompanhar a evolução da sociedade durante 350 anos de histórias. Mas que evolução será essa se olharmos para estes massacres? Depois de séculos a serem perseguidos, queimados em autos-de-fé, castrados e violentados, sucumbirem a câmaras de gás ou a trabalhos forçados, os LGBTI’s são hoje mortos à queima-roupa dentro de um bar. Que evolução será esta num país em que, após um ano da aprovação do casamento para todos, independentemente da sua orientação sexual, assiste ao maior atentado após o 11 de setembro de 2001?

O ódio é o exemplo de como uma maioria volta as costas a uma “minoria” com a qual não se preocupa ou então não quer integrar, não apenas daquele que consuma o ato. É tão culpado aquele que não aceita o amor entre duas pessoas do mesmo género como aquele que grita ódios em nome da religião, da mesma forma que quem apregoa a liberalização da compra/porte de armas tem as mãos tão manchadas de sangue como o terrorista deste massacre.

A sociedade e o país evoluíram sim, mas não são ainda capazes de educar e proteger todos os cidadãos e cidadãs e, muito menos, de considerar todos de igual para igual. Exemplo perfeito disso é compararmos este atentado com os mais recentes. Houve toda uma onda de pesar e de união aquando dos atentados em Paris e em Bruxelas. E neste caso? Será que não nos sentimos tão ligados devido a um maior distanciamento físico e cultural? Não me parece, ou pelo menos não creio que se deva apenas e só a isso mesmo. O problema é que a maior parte olha para este caso como uma minoria, como uma morte de “meia-dúzia” entre um rol já pequeno. A questão é que não se trata de um crime contra gays, mas também contra lésbicas, trans e bis que deveria ser visto como um crime contra a humanidade. Não só porque provavelmente também estariam heterossexuais dentro do bar, ou porque uma mãe recebeu, em desespero, mensagens do filho a dizer que a amava pouco antes de morrer; mas a partir do momento que um radical entra num bar e mata desenfreadamente pessoas inocentes (com armas legais) significa que há algo podre na sociedade. Significa que há um problema de todos e de todas.

Este não é um crime apenas e só do Daesh, ou mesmo de todos os radicais judeus, católicos, evangélicos, etc, que proclamam a “fé” através de diferentes formas de apedrejamento. É um crime de cada ser humano que continua a minorar afetos, sejam eles quais forem, e de políticos que continuam a relativizar o uso de armas apesar de todos os casos que enchem todos os dias os jornais devido ao uso das mesmas. Se a sociedade, apesar de quase infinita, não se consegue doer por qualquer tipo de ódio, então não é sociedade. Tal como Virginia Woolf escreveu em “Orlando: Uma Biografia”: “A sociedade é, ao mesmo tempo, tudo e nada. A sociedade é a mais poderosa mistura do mundo, e a sociedade não existe.”

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