“Portugalidade”, comodismo e espírito inquieto

Camões nadou para salvar Os Lusíadas. Nademos também em direcção às mais fundas aspirações individuais e colectivas que temos como Povo!

De entre as máximas de Nietzsche encontramos esta: “A loucura é algo de raro nos indivíduos – mas em grupos, partidos, povos, eras, é a regra”. De igual sorte, “O estômago é a razão pela qual o homem não se toma facilmente por um deus”.

Vêm estes ensinamentos lapidares a propósito de mais um 10 de Junho. Comemorar a “portugalidade” e, com ela, Camões e as comunidades portuguesas (em tempos, a “raça lusa”, como ainda há não muitos anos nos lembrava Cavaco), transformou-se em mais um feriado óptimo para descansar e passear se o tempo estiver de feição.

Nada de errado nisso. Uma das mais antigas Nações com fronteiras definidas da Europa (e do mundo) pode dar-se a este “luxo”. O que já não deve é deixar, ao menos de tempos a tempos, de reflectir sobre si mesma. Estamos cansados dos gloriosos feitos do passado “que nos vão da lei da morte libertando”. Temos neles orgulho, mas não passam disso mesmo: passado. Também se não duvida que após a adesão às então Comunidades Europeias, Portugal se aproximou do nível médio de vida do Velho Continente, embora ainda na cauda dos agora 28 Estados.

Uma específica terra, uma dada História, eventuais componentes genéticas, influências psicológicas, sociais e políticas fazem um Povo. Que, como abstracção que é, acaba por ser sempre uma espécie de “caricatura”. A imagem que de nós temos – e que os estrangeiros reflectem – de um povo afável, simpático, compassivo e desorganizado é, por isso, aquilo que mais ressalta das características da maioria. Mas há muitos portugueses com traços de personalidade de jaez árabe ou mais próximos do centro da Europa. Diria que, se quisermos ser simplistas e resumir tudo a uma palavra, ela seria “organização”.

Somos – mais uma vez generalizando – profundamente desorganizados e pouco exigentes connosco e com os demais. Trabalhamos, em média, mais horas que os nossos compagnons de route europeus e produzimos menos, por não sermos tão concentrados e estruturados no uso do tempo. Adoramos reunir quando não queremos tomar decisões e “empurramos com a barriga” amiúde. Se a população é assim, em larga medida, os políticos não poderiam ser diferentes. Lacassagne dizia que “cada sociedade tem os criminosos que merece”, o mesmo se podendo aplicar às elites dirigentes. Enquanto não nos capacitarmos de que a boa cultura das organizações com satisfação dos seus trabalhadores e um adequado plano para compatibilizar vida pessoal e profissional urgem, manteremos os insatisfatórios níveis actuais.

Do mesmo passo, ainda que com os espartilhos auto-aceites, resultantes de uma transferência/partilha de soberania com a UE, há espaço para que Portugal decida, colectivamente, o que deseja ser no mundo. A nossa História e posição geoestratégica são ímpares na ligação com os demais povos do globo. Mas que desejamos nós? Ser um destino de serviços, em especial o turismo? Ou não abdicamos de um reforço dos sectores produtivos como a agricultura e, sobretudo, a indústria, especialmente a conexionada com a investigação e a inovação? A resposta parece evidente: nenhum país é livre, nos quadros embora de uma economia transnacional e globalizada, se se limitar a ser apenas um fornecedor de serviços. Os movimentos flutuantes de transferência de mão-de-obra barata, vindos do Leste, com os quais não podemos – nem desejamos – competir leva-nos à resposta dada pelos Estados mais ricos. A Alemanha ou a França, p. ex., bem como os EUA, em distinta dimensão, não abdicam dos sectores primário e secundário. Eles são penhor da possível liberdade e soberania nos quadros hodiernos, como, de tantos outros, Steiner se tem feito eco.

Portugal não é, por outra banda, “um país de brandos costumes”, patranha construída pelo Estado Novo, mas um país adormecido, pouco exigente consigo e com os demais. É, pois, com agrado que se verifica uma – ao menos nominal – maior exigência do actual Governo no concerto da Europa a 28. A ideia de que ser “o bom aluno” compensa provou mal. Não se defende, porém, que passemos a ser o estudante sempre irreverente e do contra, porque sim. Quem é professor sabe que aqueles que nos ficam na memória são os atentos, questionadores, inquietos e que não aceitam tudo com a força de um dogma.

Necessitamos desconstruir tais verdades de adesão, aceites por comodismo, e tomar o futuro nas nossas mãos, sabendo que embora o Welfare State se deva manter na medida do possível, somos senhores do nosso destino e responsáveis primeiros pelas nossas venturas e desgraças. Depender do vizinho do lado, seja ele uma pessoa singular, seja o Estado, augura um futuro de dependência similar ao dos servos da gleba nos idos feudais. Camões nadou para salvar Os Lusíadas. Nademos também em direcção às mais fundas aspirações individuais e colectivas que temos como Povo!

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

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