Militares, emigrantes e a apologia do povo

Neste 10 de Junho, no Terreiro do Paço e em Paris, Marcelo retomou antigos laços e testou simbologias.

Marcelo Rebelo de Sousa mostrou, neste 10 de Junho, até onde vai a sua habilidade política. Em lugar de uma simples comemoração, concentrada num só dia e num só lugar, multiplicou-a por vários dias e lugares. E assentou a sua intervenção política em alvos muito precisos. Havia um problema com os militares? Louvou e condecorou militares. Havia um problema com os emigrantes? Louvou e condecorou emigrantes. Havia um problema com os discursos desta data, quase sempre recheados de recados políticos aos governos em exercício? Louvou e condecorou (em palavras) o povo e deixou os políticos e os partidos de lado. Em Lisboa, em escassos 7 minutos e 55 segundos, exaltou o papel de um povo que “não vacila, não trai, não se conforma, não desiste”, referiu-se ao exército como “povo fardado” e disse que “a sabedoria, hoje como há nove séculos, reside no povo”. Povo que é “o garante do desenvolvimento económico”. O final foi gongórico: “Somos portugueses, como sempre triunfaremos.” Já em Paris, onde disse estar como “grande emoção”, lembrou as vagas de emigração portuguesas doa anos 50 e 60, enfatizando: “Vós sois dos melhores de todos nós”.

Os palcos das celebrações também cruzam, por sua vez, inúmeras simbologias. O Terreiro do Paço foi, durante a ditadura, lugar de exaltação da “raça” e do exército enquanto garante do colonialismo, mas foi também onde Salgueiro Maia garantiu a queda da ditadura. Em termos militares, Marcelo quis ser o mais abrangente possível: participou em cerimónias preparatórias, visitou o Museu do Combatente, condecorou militares de várias missões (inclusive no final da guerra colonial) e, em França, tinha na agenda uma homenagem aos combatentes portugueses mortos na I Guerra Mundial. Em contrapartida, a presença em Paris foi também simbólica. Ali foram acolhidos muitos portugueses, exilados ou desertores, adversários da guerra colonial, mas também se começou a formar, por via da emigração (forçada, em grande parte, pela miséria), uma das maiores comunidades portuguesas no mundo. Além do mais, foi em França (e François Hollande recordou-o, no seu discurso) que José Afonso gravou Grândola Vila Morena, mais tarde hino da revolução dos cravos que desaguaria no Terreiro do Paço.

Ao ligar tudo isto, com a habilidade de não hostilizar ninguém, Marcelo retomou antigos laços (militares e emigrantes ficar-lhe-ão gratos por tais iniciativas), testou simbologia adversas mas afinal ligadas pela história e teve ainda, como “bónus”, um elogio de França: Hollande agradeceu que o 10 de Junho fosse lá comemorado – “Portugal honra a França. (…) Em França, será que seria possível ao Presidente da República e ao primeiro-ministro ir festejar o 14 de Julho noutra capital a não ser Paris?” –, elogiou os portugueses (“Vocês estão na base da construção em França”), disse que ia bater-se pelo ensino da língua portuguesa e prometeu visitar oficialmente Portugal em Julho, com uma comitiva de muitos portugueses e franco-portugueses. Não haverá muitos 10 de Junho, nos anos recentes, com um balanço tão produtivo.

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