O como e o porquê de uma decisão histórica

Pela segunda vez, os britânicos vão decidir em referendo se querem ficar ou sair do que é hoje a União Europeia. O que começou por ser um expediente político põe agora em jogo o futuro do país e da própria Europa.

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Por que vão os britânicos referendar a presença na UE?

O Reino Unido é um dos poucos países que referendaram a sua participação no que era então a Comunidade Económica Europeia – em 1975, dois anos depois da adesão, dois terços dos eleitores aprovaram a permanência. Mas a questão não ficou resolvida e a ideia de uma nova consulta foi repetida a cada passo do processo de integração europeu. A porta foi finalmente aberta por David Cameron, em Janeiro de 2013, numa tentativa de responder à pressão crescente dos eurocépticos do seu partido e responder à subida nas sondagens do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), que tem como objectivo existencial a saída da UE. “É tempo de dar a palavra ao povo britânico. É tempo de decidir a questão europeia na política britânica”, afirmou o líder conservador no discurso em que prometeu que, se fosse reeleito em 2015, iria renegociar os termos da presença britânica na UE e submeter o resultado ao veredicto dos eleitores. Em Maio do ano passado, contra as expectativas, os tories conseguiram maioria absoluta e Cameron teve de cumprir a promessa, iniciando negociações com Bruxelas.

Como reagiu a UE?

Por essa altura, os líderes europeus já lhe tinham dado a entender que fariam o possível para manter Londres na UE, mas não a qualquer custo: a revisão dos tratados necessária para acomodar as ambições do primeiro-ministro britânico estava posta de parte. Em Novembro, depois de meses de impasse, Cameron apresentou as suas quatro exigências, a mais polémica das quais previa limitar o acesso dos cidadãos comunitários aos apoios sociais, que Londres alega ser um factor de atracção para os trabalhadores de outros países da UE. A medida punha em causa o princípio da livre circulação de pessoas, pedra fundamental do mercado único, e foi muito contestada pelos países de Leste, de onde são oriundos boa parte dos 2,1 milhões de cidadãos comunitários a residir actualmente no Reino Unido.

Como terminaram as negociações?

Em Fevereiro, numa cimeira que se estendeu para lá do previsto, Cameron obteve finalmente um acordo. Os restantes parceiros reconheceram que, face aos valores elevados da imigração, o país poderá accionar durante um máximo de sete anos um “travão de emergência” para limitar a atribuição de benefícios sociais aos trabalhadores europeus recém-chegados. O acordo deixou também escrito que o princípio da “união cada vez mais estreita” prevista nos tratados não se aplica ao Reino Unido e que o país poderá forçar um debate a 28 quando entender que os interesses do seu sector financeiro – a City – estão a ser postos em causa pela zona euro. Cedências desvalorizadas pelos eurocépticos, mas que Cameron considerou suficientes para defender que o Reino Unido deve continuar na UE.

Já algum país saiu da UE?

Até agora não. O único precedente que existe é o da Gronelândia, território ultramarino da Dinamarca. Em 1982, aproveitando a maior autonomia que lhe foi concedida por Copenhaga e receando as políticas da então Comunidade Económica Europeia (CEE) para as pescas, sector fundamental para a economia da região, 52% da população votou pela saída. As negociações arrastaram-se três anos e a Gronelândia deixou de pertencer à CEE em 1985, um ano antes da adesão de Portugal.

Qual é o peso do Reino Unido na UE?

A economia britânica é a segunda maior da UE, atrás da Alemanha, e o terceiro país mais populoso. Londres tem na UE o seu principal parceiro comercial – 45% das suas exportações têm como destino os outros 27 Estados-membros e 53% do que importa vem de lá –, mas só 7% das exportações da totalidade dos outros países se destinam ao Reino Unido. Uma dependência que leva o Governo britânico a afirmar que três milhões de empregos no país estão ligados, directa ou indirectamente à UE – estatística contestada pelos defensores da saída da UE.

O Reino Unido é também um dos principais contribuintes para o orçamento comunitário e um dos dez que pagam mais do que recebem. Mas, desde a famosa negociação liderada por Margaret Thatcher em 1984, o Reino Unido recebe anualmente a devolução de parte da sua contribuição. Segundo o gabinete de estatísticas britânico, a contribuição líquida do país para Bruxelas em 2014 rondou os 5700 milhões de libras.

Mais importante, a City, como é conhecido o centro financeiro de Londres, é a maior praça financeira da UE (e uma das maiores do mundo) e, mesmo Londres não pertencendo à união monetária, é ali que é efectuado o maior volume de negócios em euros.

Para lá da economia, o Reino Unido tem as Forças Armadas com maior capacidade operacional da UE, uma das diplomacias mais experientes e uma “relação especial” com os Estados Unidos e com os países da Commonweath. Detém também um dos cinco lugares permanentes no Conselho de Segurança e é uma das duas potências nucleares da Europa ocidental.

Quem é a favor da permanência?

Após o acordo com a UE, a posição oficial do Governo britânico é favorável à permanência. Com Cameron estão 16 dos actuais ministros, incluindo os das Finanças, Interior, Negócios Estrangeiros e Defesa. Muito dividido sobre a questão, o Partido Conservador mantém-se neutro, ao contrário do que acontece com a oposição trabalhista, os liberais-democratas, os nacionalistas escoceses e galeses. A favor da permanência estão também as grandes confederações sindicais e patronais, a maioria dos gestores das grandes empresas e das principais universidades do país.

Quais os seus principais argumentos?

Boa parte da sua argumentação baseia-se nos enormes riscos que um “salto no desconhecido” representaria para a economia do país, muito virada para as exportações, para a sua segurança e especialmente para o sector financeiro – a City alberga 15 mil empresas, gera 45 mil milhões de libras por ano, o equivalente a 3% do PIB do país. Sublinham que a vitória do “Brexit” forçará o Governo a accionar o artigo 50º do Tratado de Lisboa, que prevê a saída do país da UE no prazo de dois anos, salvo uma decisão unânime em contrário, e lembram que o país precisará mais do que isso para negociar novos tratados comerciaisAvisam ainda que, para ter acesso ao mercado único europeu, o país teria de continuar a aceitar a liberdade de circulação de pessoas. À esquerda, os trabalhistas avisam ainda que a saída privará os trabalhadores das protecções legais e sociais previstos na legislação comunitária. Uns e outros temem ainda que, fora da UE, o país perca boa parte da sua capacidade de influência no mundo.

Quem defende a saída?

Sob pressão do seu partido, Cameron autorizou os ministros a fazer campanha pela saída e cinco deles, incluindo o titular da Justiça, Michael Gove, aproveitaram essa possibilidade. Metade dos deputados conservadores também se posicionaram contra o executivo e participam, mais ou menos activamente, numa campanha que tem em Boris Johnson, o ex-mayor de Londres e potencial candidato à sucessão de Cameron, a sua principal figura. Do mesmo lado, mas de forma autónoma, está Nigel Farage, o líder do UKIP, que depois de ter vencido as europeias de 2014 espera transformar este referendo numa vitória pessoal.

E porquê?

Para os partidários do “Brexit”, a saída permitiria ao país poupar milhões de libras que poderiam ser gastos na melhoria do serviço nacional de saúde, na educação e em apoios sociais. Alegam também que a pesada regulamentação europeia é um entrave à competitividade da economia britânica e insistem que a UE se transformou numa organização que foge ao controlo democrático dos Parlamentos nacionais. Desvalorizam os riscos económicos da saída e, mais do que tudo, afirmam que só fora da UE Londres pode recuperar o controlo das suas fronteiras e limitar o número crescente de cidadãos europeus que querem trabalhar no Reino Unido.

Quem pode votar?

Os cidadãos britânicos, irlandeses e oriundos dos países da Commonwealth que tenham mais de 18 anos e residam no Reino Unido. Os cidadãos britânicos que residam no exterior mas que tenham estado registados nos cadernos eleitorais nos últimos 15 anos. Os cidadãos da Commonwealth que residam em Gibraltar. Apesar de directamente visados pela decisão, os cidadãos comunitários residentes no país não poderão votar.

O que dizem as sondagens?

resultados para todos os gostos, mas todos os institutos coincidem na conclusão que, entre indecisos e as margens de erro, é muito difícil ter para já uma noção de qual será o desfecho do referendo. A incerteza agrava-se face ao falhanço das sondagens nas eleições legislativas de 2015 – nenhuma previu que os conservadores iriam vencer com maioria absoluta –  e aos diferentes métodos usados por diferentes empresas: as sondagens telefónicas apresentam resultados mais favoráveis à permanência, as que auscultam um painel de eleitores por via electrónica indicam uma tendência favorável ao “Brexit”. Depois de alguns resultados mais favoráveis aos partidários da permanência, os defensores da saída parecem ganhar terreno nas sondagens.

Quais são os eleitores mais favoráveis à saída?

Os estudos existentes indicam que os eleitores mais velhos, os votantes tradicionais do Partido Conservador, os residentes no Sul e Sudoeste de Inglaterra e os leitores de jornais como o muito eurocéptico tablóide Daily Express são maioritariamente favoráveis ao “Brexit”. Os votantes com menos de 30 anos, educação universitária, residentes na Escócia e leitores de jornais como o Guardian estão entre os mais fervorosos defensores da UE.

Quando vão ser anunciados os resultados?

As urnas vão estar abertas até às 22h. A votação única facilita a contagem num país habituado a eleições por círculos, mas os primeiros resultados significativos só são esperados durante a madrugada ou início da manhã de dia 24. Em 2011, no referendo à reforma do sistema eleitoral, o resultado final só foi anunciado 24 horas depois do fecho das urnas.

O que acontece se o “Brexit” vencer?

A resposta curta é que ninguém tem a certeza, uma vez que não existe um precedente claro (ver resposta acima). O único guião disponível é o que consta do artigo 50 do Tratado de Lisboa que estipula um prazo de dois anos para que seja negociada a saída de um Estado-membro, a menos que haja uma decisão unânime para prolongar as discussões. O prazo começa a contar a partir do dia em que o Governo desse país notificar formalmente o Conselho Europeu. David Cameron diz que accionará o protocolo de imediato, mas Johnson e outros responsáveis da campanha pela saída afirmam que iniciar de imediato as discussões equivaleria a um suicídio. Durante as negociações, o Reino Unido continuará sujeito às obrigações e à lei comunitária, mas não poderá participar nas decisões da UE sobre a sua própria saída. Em Londres, a prioridade será negociar uma nova relação comercial com a UE – tarefa que poucos acreditam possa ser concluída em dois anos – e rever milhares de páginas de legislação europeia, para decidir que dispositivos pretende manter e quais repudiará. O país terá também de negociar novos acordos para regular o comércio com os países terceiros.

O que acontecerá aos portugueses que vivem no país?

A campanha do “Brexit” afirma que os trabalhadores europeus que já estão no país não serão afectados pela saída, mas há várias incertezas em relação aos direitos de que actualmente gozam enquanto cidadãos europeus. Em relação ao futuro, muito dependerá do tipo de acordo que o Reino Unido negociar com Bruxelas – uma relação idêntica à que goza a Noruega, que tem acesso ao mercado único europeu, obrigaria o país a aceitar a livre circulação de pessoas. Criar um sistema de imigração semelhante, por exemplo, ao australiano obrigaria os trabalhadores europeus a obter vistos de trabalho. Uma decisão nesse sentido levaria vários países da UE a adoptar medidas semelhantes para os britânicos que residem nos seus territórios.