O Reino Unido já não passa sem os polacos, mas não gosta disso

Diverso e solidário — é como o mundo vê o Reino Unido, mas o país está a mudar. São cada vez mais os imigrantes a bater à porta, atraídos pelo mercado de emprego e pelo Estado social. Os polacos, que em 2003 eram 75 mil, já são 800 mil.

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No bairro londrino de Hammersmith, concentram-se muitas lojas polacas Toby Melville/REUTERS

O edifício é grande e feio, um pedaço de cimento e vidro castanho no meio da rua. Pela porta entram chineses. Alguns transportam peças de roupa tradicional, outros mobiliário. São adereços — esta noite, a Ópera de Pequim actua no centro social e cultural polaco no bairro londrino de Hammersmith.

É de manhã e é feriado. Por isso, o centro está quase vazio. À noite, diz a senhora simpática na recepção, virá muita gente, na sala de espectáculos cabem quase 400 pessoas, e ainda há o restaurante, que é “muito bom”, e o bar. Nos dias normais, há sempre gente a circular, para ir à livraria, à biblioteca, à loja de artigos polacos, aos concertos de jazz ou ao teatro. Há uma sala onde se bebe um copo e se dança. Chegam a estar ali 2000 pessoas. “A comunidade é muito activa e unida.”

Não diz mais nada. O gerente acabou o cigarro que estava a fumar à porta e regressa para dizer que o pessoal, infelizmente, não está autorizado a fazer declarações. “E não vale a pena ir às lojas polacas, estão todas fechadas.”

Não haverá declarações oficiais sobre a maior comunidade estrangeira de Londres. O número de polacos cresceu tanto na última década, desde que a União Europeia (UE) se estendeu para o antigo bloco de leste, em 2004, que o polaco já é a segunda língua mais falada na capital do Reino Unido, tendo ultrapassado o punjabi e o urdu. Na verdade, já é a segunda língua mais falada em toda a Inglaterra e no País de Gales.

Em 2003, dizem os dados do instituto britânico de estatísticas, viviam no país apenas 75 mil polacos, em 2011 já eram 521 mil e, hoje, são 800 mil.

Os polacos chegaram para apanhar fruta e vegetais no campo, trabalhar em fábricas, empregar-se (ou abrir negócios) como canalizadores, pintores, mecânicos, operários da construção civil; as mulheres como cabeleireiras, empregadas da restauração, damas de companhia de senhoras que vivem sozinhas, professoras.

Alvos do UKIP
Para o partido de direita UKIP (Partido da Independência do Reino Unido), foi fácil diabolizar os polacos na campanha para as legislativas desta quinta-feira. Não houve um único dia da campanha em que o líder do partido, Nigel Farage, não pusesse a imigração nos media. É a âncora de toda a sua plataforma política — os imigrantes, na visão do UKIP, são os responsáveis pelo declínio da sociedade, das instituições e do bem-estar.

Farage não faz distinções — sejam eles cidadãos europeus com plenos direitos, paquistaneses à procura de melhor vida ou sírios fugidos do extremismo; os estrangeiros são todos igualmente indesejáveis.

“Os patrões britânicos têm de ter o direito de contratar cidadãos britânicos, em vez de polacos”, disse Farage em campanha. O que propõe? Que o Reino Unido deixe a União Europeia, que os imigrantes não legalizados sejam repatriados, que as fronteiras sejam fechadas a cadeado e que se estabeleça uma cota anual de entradas (50 mil pessoas por ano é o seu número de referência).

Amigos de Churchill
“É claro que os patrões preferem polacos, trabalham melhor do que os britânicos”, diz Ewa Learmount, Szwedkowicz de solteira. Está há 47 anos em Londres. Chegou da Polónia comunista para estudar inglês durante três meses e não voltou.

“Naquela altura, os polacos só podiam viajar com autorização oficial e se recebessem um convite. Eu estudava Arquitectura e queria fazer um curso de Inglês. Como uma tia minha vivia em Londres, pedi-lhe para me convidar”, conta.

No começo da sua vida inglesa, Ewa sentiu-se isolada. Eram poucos, e velhos, os polacos de Londres. Chegaram no fim da II Guerra, quando a primeira comunidade polaca se instalou na cidade, depois de Winston Churchill ter feito aprovar uma lei de imigração especial para acolher os que ajudaram os Aliados a derrotar Hitler. “Nunca poderemos pagar o que os polacos fizeram por nós”, disse Churchill, que aceitou no país os combatentes e as suas famílias quando estes decidiram não ficar na Polónia dominada pelo regime soviético.

Quando regime comunista caiu, em 1989 — o ano em que foi oficialmente dissolvido o governo polaco no exílio, instalado em Londres desde a ocupação nazi —, o Reino Unido viu chegar uma segunda vaga de imigrantes polacos.

A intenção de Ewa não foi fugir ao comunismo. Mas em Londres fez comparações: “Aqui havia uma vida livre. Podíamos andar livremente, respirar livremente. Na Polónia, na época, não havia nada. Toda a gente tinha trabalho e salário, mas não havia nada nas lojas. Íamos para a fila do supermercado sem sabermos o que havia nesse dia para comprar: às vezes só havia alfaces, outras só cenouras. E depois havia o regime: burocrático, desonesto, corrupto, opressivo.”

Escassos três dias antes de o seu visto expirar, e com viagem de regresso a Lotz marcada, Ewa ainda não sabia que iria ficar em Londres e mudar radicalmente de vida.

De repente, o rapaz com quem namoriscava desde que chegara a Londres propôs-lhe casamento. “Nós mal nos conhecíamos, ele não queria que eu me fosse embora, eu não queria ir e casar era a única solução.”

A passagem de avião estava marcada para 6 de Março de 1968, uma segunda-feira, John marcou o casamento para sábado, 4. “Como não queria fazer figura de parva, porque não sabia se aquilo era a sério ou uma brincadeira, meti um ramo de flores num saco de plástico, apanhei o autocarro 11 que passava em frente ao registo civil, e só quando vi que ele estava à porta, à minha espera, é que saí do autocarro e me fui casar”, conta Ewa. “Mas ele também não sabia se eu ia aparecer. Pelo que não tirou o dia de folga e depois de nos casarmos ele teve de ir trabalhar.” Ewa e John estiveram casados 23 anos, até ele morrer.

A vida foi difícil, diz Ewa. O marido trabalhava de dia, ela à noite. “Encontrávamo-nos na estação do metro, ele a chegar, eu a partir.  Quando tivemos o nosso filho, eu levava o miúdo no carrinho para o metro quando ia trabalhar e entregava-o ao John, que voltava com ele para casa. Trabalhei muito, muito. Quando nos casámos, tínhamos dois garfos, dois pratos e não havia sofá”, diz Ewa, julgando ver a mesma atitude nos polacos que chegam agora.

“Os ingleses queixam-se que os polacos lhes roubam o trabalho, mas não é verdade. O que vejo é que os britânicos não querem os empregos que existem”, diz esta polaca-britânica que trabalhou 44 anos na restauração, serviu a muitas mesas e se reformou aos 64, quando era chefe numa cadeia mundial de hambúrgueres e rock.

“Os polacos — diz — aceitam tudo porque precisam de trabalhar e, aqui, vejo-os fazer coisas que nunca fariam na Polónia; muitos têm estudos superiores.”

A culpa é dos trabalhistas
Como é britânica, Ewa tem direito de voto nas legislativas — os imigrantes legalizados só podem fazê-lo nas municipais. Vai pôr a cruz no Partido Conservador. “Nunca votaria nos trabalhistas, nunca.” Responsabiliza-os pelo “estado das coisas”. “Os trabalhistas sempre deram, deram, deram. Sempre deram demasiado dinheiro a quem não trabalha. Os benefícios sociais tornaram-se tão grandes, o dinheiro pago era tanto, que muita gente preferiu pedi-lo, em vez de ir à procura de trabalho.”

Este sistema de Estado social excessivo que durante décadas “incentivou a preguiça”, diz, sentada na cozinha da sua elegante casa em Kingston, um bairro abastado do Sul de Londres, também se tornou muito sedutor para pessoas do mundo inteiro, atraídas por uma certa facilidade.

“Agora que os benefícios estão a ser reduzidos, as pessoas voltam-se para os que vêm de fora, culpam-nos. Dizem que não há emprego, o que não é verdade. Há que lutar. Eu, quando cheguei a este país, tive de ter dois empregos para me sustentar. De manhã, servia pequenos-almoços num hotel, ganhava uma libra por dia, o que dava para pagar o quarto que eram sete libras por semana. À tarde ia às aulas e, à noite, para ter dinheiro para comer, trabalhava num restaurante.”

É porque há trabalho e gente disposta a fazê-lo, considera esta polaca britânica, que a imigração está a aumentar. No ano passado, e apesar das promessas do Governo conservador para reduzir o fluxo, o Reino Unido absorveu mais 350 mil pessoas, um número recorde que só teve paralelo em 2005, quando chegaram 320 mil. Destas, 191 mil vieram da Ásia e África, 161 mil da Europa (73 mil da União Europeia) e de outras regiões. “O país não consegue lidar com tanta gente”, diz Ewa.

Os que chegam da Europa comunitária têm livre acesso aos empregos. Todos têm acesso aos benefícios — é a imagem de marca do Reino Unido, olhado pelos cidadãos do mundo como um país diverso e solidário.

Essa realidade, porém, já começou a mudar — o Governo começou a restringir a todos o acesso aos benefícios — subsídios aos filhos, casas camarárias, cuidados de saúde. E o primeiro-ministro, David Cameron, já prometeu mais mudanças, maiores restrições.

"Parasitam o país"
Ewa Learmount defende uma gestão mais lúcida dos recursos. Muitos ingleses concordam com ela. No debate sobre imigração que a BBC2 organizou na segunda-feira, com uma plateia com gente de todos os sectores políticos, um participante chamou ao Serviço Nacional de Saúde “serviço internacional de saúde”. Foi aplaudido. “Isto tem de acabar”, disse o homem, que vai votar UKIP, porque considera os imigrantes a fonte de todos os males. Por causa deles, disse, os salários baixaram muito; por causa do Estado social, parasitam o país, acusou.

É uma visão distorcida da realidade, alertou o instituto de estatística na semana passada. Apesar de na opinião pública haver a percepção de que os estrangeiros recebem mais em benefícios sociais do que aquilo que pagam de impostos, o oposto é que está correcto.

A mensagem da culpa dos imigrantes propagou-se entre os britânicos. E a do medo entre os imigrantes, receosos das medidas que podem vir aí. Entre os polacos, o medo maior é que o país saia da União Europeia — nos últimos dias da campanha, Cameron deixou bem claro que a promessa de fazer um referendo sobre a permanência do país na UE é para cumprir. A eleição está empatada e o primeiro-ministro, que luta pela reeleição, quer recuperar os votos que o UKIP, xenófobo e antieuropeísta, lhe roubou.

Por causa do referendo prometido para 2017, milhares de polacos decidiram pedir a cidadania britânica (podem fazê-lo após cinco anos no país). O número de pedidos subiu 1200%, o que põe os polacos no topo da tabela dos pedidos da UE. No cimo da tabela geral estão os indianos, seguidos dos paquistaneses, dos filipinos, dos nigerianos e dos cidadãos do Bangladesh.

“Sim, estou a pensar se devo pedir ou não a cidadania”, diz Dorota Dovda, 28 anos, empregada num centro de artes e que, no dia feriado, anda a ver roupa numa loja da rua central de Hammersmith. Está há seis anos em Londres e não pretende regressar à Polónia. “Não estou aqui para juntar dinheiro para comprar casa lá, nem nada assim”, diz, por isso não gosta da ideia do referendo.

Apesar de conhecer a realidade polaca — a taxa de desemprego elevada, os salários baixíssimos —, Ewa Szwedkowicz Learmount está surpreendida com a quantidade de polacos que chegam todos os anos ao Reino Unido. “Nunca pensei que viessem tantos. Mas tenho a certeza de que virão muitos mais, o que é uma pena para a Polónia, que está a ficar sem gente qualificada.”

“Encontro polacos em todo o lado, a minha instrutora de natação é polaca, a última vez que levei o carro à oficina os mecânicos eram polacos.” A comunidade está a crescer por toda Londres: Ealing, Balham, Acton, South Kensignton, Islington, Willesden Green. “Estão em todo o lado.”

Ewa, que vai só a Hammersmith quando tem vontade de comer pierogi — os deliciosos pastéis de massa cozida recheados de batata ou de carne —, não deixa de ter nostalgia do tempo em que podia andar na rua e fazer desabafos que ninguém ouvia, porque falava em polaco. Agora tem de ter cuidado com o que diz. “Um dia destes fui comprar lombo, porque queria fazer bife tártaro, mas comentei que a carne não me parecia muito fresca. A mulher que estava ao balcão olhou para mim e respondeu-me, em polaco, claro: ‘É fresquíssima.’”

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