“Dizer que podemos ter todos os benefícios de estar na UE sem nenhum inconveniente é pura fantasia”

David Lidington, secretário de Estado britânico para a Europa, diz que o país obteve concessões na cimeira de Fevereiro “muito significativas” e assegura que Cameron não podia ter decidido mais cedo o seu apoio à permanência

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Miguel Manso

É o político britânico que há mais tempo ocupa uma das pastas mais mal-amadas em Westminster – é desde 2010 o governante incumbido de gerir as difíceis relações com a UE. No arranque da campanha para o referendo de 23 de Junho, não é brando com os argumentos de quem defende a saída do país e avisa que, caso seja essa a decisão dos eleitores, o país pode ser excluído da UE após dois anos, tendo de negociar acordos comerciais já estando fora.

A primeira análise oficial do Governo às consequências do "Brexit" avisa que “as vidas de milhões de britânicos a viver na Europa serão afectadas, na medida em que o Reino Unido demorará 10 anos a libertar-se da UE”. Deixe-me fazer-lhe uma provocação: Quando há tanto em jogo e há tantas crises a assombrar o mundo não é um pouco irresponsável criar mais incerteza?
Temos de confiar no povo. Qualquer exercício em democracia envolve riscos. E no Reino Unido há vários anos que cresce o sentimento de que, tratado após tratado, os poderes foram sendo transferidos do nível nacional para o nível europeu e em nenhuma das vezes o povo britânico teve oportunidade de se pronunciar. Esse descontentamento dos eleitores, de não terem sido ouvidos quando os nossos vizinhos irlandeses referendaram os tratados, estava a envenenar o debate sobre a UE. A questão já existia e o consentimento democrático para a permanência na UE era mínimo. O primeiro-ministro decidiu que a única maneira de lhe dar resposta era liderar o debate e devolver a questão ao povo para que o assunto fique resolvido.

Mas por quê agora, com tanta incerteza económica e política, este não é um momento perigoso?
Cameron prometeu em Janeiro de 2013, há três anos, que iria fazer o referendo até ao final de 2017. A promessa foi repetida no programa eleitoral em 2015 e tendo assumido esse compromisso tinha de o cumprir. Se não o tivesse feito, teria abalado a confiança dos eleitores na democracia.

Mas não era possível adiar um pouco mais?
Tendo chegado a um acordo no Conselho Europeu, as pessoas não perceberiam se esperássemos oito meses ou mesmo um ano e isso teria aumentado a incerteza nos mercados e enfraquecido a confiança das empresas. A economia não gosta de incerteza, por isso tendo chegado a um acordo [com a UE] precisávamos de avançar tão rapidamente quanto possível.

Quão confiante está de que os britânicos vão votar pela permanência?
Estou esperançado, mas não condescendente. O Governo está a fazer uma campanha forte pela permanência. Pensamos que essa é a decisão certa para a nossa segurança e prosperidade, para a nossa força a nível internacional. Deixar a UE implicaria grandes riscos, tanto económicos como políticos. Mas não podemos dar o resultado como certo, isso seria arrogante.

Os números das sondagens não são muito bons. Vemos que há muita gente indecisa, o sim e o não estão muito próximos…
Não creio que seja uma grande surpresa o facto de haver tanta gente indecisa. Há muito poucas pessoas que acordam a pensar na UE.

Excepto no Partido Conservador…
Sim [risos]. Fora do partido conservador, só há um punhado de pessoas no Parlamento que, como eu, são pagas para pensar nisso o dia todo. O que mudou nas últimas duas semanas é que as pessoas acreditam que esta é uma decisão importante e querem compreender melhor os argumentos. As sondagens variam – algumas mostram um resultado muito renhido, outras, em particular as feitas por telefone mostram uma maioria significativa a favor da permanência.

As crises tornaram mais difícil mostrar às pessoas os benefícios trazidos pela UE. É por isso que o Governo se tem concentrado nos riscos de uma potencial saída?
As duas coisas têm que andar de mãos dadas. As pessoas precisam de perceber os riscos, particularmente tendo em conta o artigo 50º do Tratado de Lisboa, que estipula que depois de dois anos de negociações, o Estado que pretende sair é excluído de todos os deveres e obrigações decorrentes dos tratados, a menos que haja uma decisão unânime para estender esse prazo. As pessoas que estão a fazer campanha pela saída argumentam que poderemos obter todos os benefícios de estar na UE, no comércio e no acesso ao mercado único, sem nenhum dos inconvenientes, e isso é pura fantasia. Temos de explicar às pessoas que essa análise está errada.

Mas há também argumentos fortes sobre os benefícios da pertença à UE e estamos a mostrá-los. O acesso ao mercado único beneficia as indústrias britânicas, por isso, a esmagadora maioria das empresas saiu em defesa da permanência. Recebemos mais de um quarto de todo o investimento feitos por países terceiros na UE, porque o Reino Unido é visto como um bom país para investir e também porque somos a porta de entrada desse mercado de 500 milhões de pessoas. Podemos também lembrar que apesar de o Reino Unido ter um peso próprio na diplomacia internacional pode usar a sua presença na UE para o reforçar. Não tenho dúvidas de que as sanções contra o programa nuclear iraniano foram mais poderosas do que Teerão ou Washington esperavam porque todos os Vinte e Oito Estados as apoiaram, e por isso todos os canais e oportunidades para escapar a essas sanções foram encerrados e isso foi decisivo para trazer o Irão para as negociações.

Mas temos assistimos ao regresso do “Project Fear”, o tipo de campanha negativa que marcou o referendo escocês…
Esse é um termo usado pelas pessoas que tentam evitar responder às perguntas difíceis.

Disse que os britânicos poderiam perder o direito de viver noutros países da UE…está a jogar com o medo
Não, estamos a apontar para a realidade. O que considero inacreditável é a campanha a favor da saída diga que o Reino Unido pode deixar a UE, manter todos os direitos para os cerca de dois milhões de britânicos que vivem nos outros países, mas possa barrar o livre movimento dos cidadãos dos outros Estados-membros para o Reino Unido. Isso é pura fantasia e as pessoas precisam que lhes digam que isso é fantasia.

Não acredita que, no caso de saída, os restantes membros estariam dispostos a fazer cedências para aceder ao mercado britânico…
As estatísticas indicam que cerca de 45 das nossas exportações vão para os restantes países da UE e só 7% das exportações da totalidade dos outros países se destinam ao Reino Unido. Se sairmos o poder negocial está em grande medida nas mãos dos outros 27. E o prazo de dois anos agrava isso porque a história mostra que até a Gronelândia demorou três anos a sair da então CEE. Os acordos de livre comércio entre países terceiros e a UE demoram normalmente mais do que isso. Podemos ficar na posição de ter de deixar a UE e de ter de negociar os acordos comerciais já estando fora. Não vejo qualquer razão para termos acesso ao mercado único sem as obrigações que isso implica, como a livre circulação, as contribuições para o orçamento comunitário. E, tal como acontece com a Noruega ou com a Suíça, isso implica também aplicar todas as regras europeias associadas ao mercado único sem ter nada a dizer na sua definição. Parece-me claramente uma opção pior do que a actual.

Que apoio espera dos líderes europeus nesta campanha?
Todos disseram que querem que o Reino Unido permaneça na UE e isso é bom. O apoio dos nossos amigos é sempre bem-vindo, mas acho importante que os outros governos reconheçam que esta é uma escolha democrática dos eleitores britânicos.

Charles Grant, do Center for European Reform, escreveu depois da cimeira de Bruxelas que Cameron dificultou a sua tarefa quando disse que sem um acordo não excluía nenhuma opção. "Agora tem de fazer uma viragem estranha, de euro-crítico para euro-entusiasta”. Temos ouvido declarações de entusiasmo nos últimos dias.
Temos ouvido declarações muito claras, de que o caminho certo é a permanência. Nunca ouvirá no Reino Unido, à direita ou à esquerda, um entusiasmo emocional em relação à ideia de integração europeia. A nossa história é diferente da maioria dos países europeus. Para eles, a criação das comunidades europeias e a adesão à UE foi associada à restauração da democracia depois de alguns dos episódios mais horríveis da história do século XX. Para nós, foi a identidade e a solidariedade nacional que nos permitiu enfrentar o nazismo. Por isso a nossa abordagem à UE sempre foi pragmática. E é por isso que os argumentos de Cameron têm força. Ele diz: “Não sou um entusiasta da UE, como qualquer instituição humana, tem as suas falhas e precisa de reformas. Mas a minha experiência convence-me de que o nosso interesse nacional é melhor servido sendo membro desta organização”.

Mas essa é uma posição que ele assume agora, com base no resultado das negociações. Muita gente duvida, no entanto, que exista realmente um “novo quadro” nas relações entre Londres e a UE
O que conseguimos na cimeira é muito significativo. O mais importante foi o reconhecimento, de uma forma sem precedentes, de que nem todos os Estados-membros vão integrar-se ao mesmo nível em todas as áreas. É, em parte, a questão da moeda única. Os que optaram por aderir ao euro aceitaram uma dinâmica que conduz a maior integração – em Fevereiro obtivemos a aceitação de que isso deve ser feito respeitando a integridade das decisões a 28 e de que não pode haver discriminação em relação aos países que não aderiram. Conseguimos também a exclusão britânica do princípio da “união cada vez mais estreita” e um novo enquadramento para o acesso [dos imigrantes] aos benefícios sociais, pondo fim à situação em que as pessoas podiam receber dinheiro da Segurança Social sem nunca terem contribuído. Mais tem de ser feito. Mas creio que conseguimos um pacote importante de reformas.

Acha que os eleitores serão sensíveis a essas mudanças?
No final de contas a decisão dos eleitores vai resumir-se a uma escolha entre dois pólos: acredita que o Reino Unido ficará mais seguro, mais próspero, mais forte no mundo ficando na UE ou saindo. Acredito que a realidade mostra que ficamos melhor permanecendo e, claro, lutando por mais reformas, mas participando nas decisões e não ficando de fora a queixar-nos.

A questão não foi sempre essa? Cameron não podia ter tomado uma decisão antes?
Não, porque acho quer era importante mostrarmos que a UE podia ser mudada a partir de dentro. Uma das acusações feitas por quem defende a saída é a de que nunca conseguiremos mudar a UE por dentro. E o reconhecimento que obtivemos de que há diversidade dentro da UE, em particular no que diz respeito à moeda única, era uma coisa que precisava de ficar definida.

O que conseguimos foi um conjunto de princípios que serão inscritos nos tratados e isso fornece-nos garantias muito fortes de que não seremos discriminados e que os países fora da zona euro têm um lugar muito específico na UE.

Sendo a imigração a principal preocupação dos eleitores, como será possível convencê-los a apoiarem o “sim” quando foi tão difícil conseguir que os parceiros aceitassem as restrições no acesso dos trabalhadores comunitários ao sistema de segurança social.  
As mudanças acordadas são um bom passo. Em primeiro lugar, porque repõem o sentido de justiça no sistema social, ao ligar os apoios atribuídos aos trabalhadores [comunitários] com as contribuições para esse mesmo sistema. Mas também porque eliminam um factor artificial de atracção [dos imigrantes para o Reino Unido] que existia até agora. Acho que são reformas boas. Por outro lado, sempre aceitei que, apesar de ser razoável que as pessoas se preocupem com a imigração, isso não deve conduzir a uma estigmatização das pessoas de outros países, que estão a trabalhar no sistema nacional de saúde, nos lares idosos, nos hotéis, na horticultura e os empregadores britânicos apreciam muito o trabalho que eles fazem.

A UE está neste momento a tentar encontrar uma solução comum para a crise dos refugiados. A forma como está a lidar com o problema não ajuda muito a campanha do “sim”.
É importante que a Europa mostre que pode encontrar uma resposta coerente e estratégica a este desafio. Estamos confrontados com o colapso da governação em partes de África e do Médio Oriente. E isso acontece ao mesmo tempo que a pressão demográfica faz com que haja uma grande tentação para as pessoas emigrarem – em muitos destes países 60% da população, às vezes mais, tem menos de 30 anos. E mesmo os que são seguros ou relativamente estáveis, não estar a gerar empregos suficientes. Uma resposta coerente e estratégica implica começar pelos países de origem. Mas temos também de trabalhar em conjunto para combater o tráfico de pessoas. E ainda de trabalhar juntos no reforço das fronteiras externas. É por isso que, mesmo não sendo membros do espaço Schengen, estamos a contribuir para a missão da FRONTEX que está a ajudar a Grécia a processar mais pessoas que chegam ao seu território, que estamos a contribuir para a missão naval da UE e agora também para a missão da NATO no Mediterrâneo oriental.

Mas esta sensação de confusão que impera na UE ajuda os que fazem campanha pela saída…
A saída britânica da UE não vai impedir uma única pessoa de cruzar o Egeu ou de chegar até Calais. O que pode fazer é pôr em risco o controlo fronteiriço que agora temos em solo francês, incluindo em Calais. Mas é do interesse britânico, como de qualquer outro país, que haja uma resposta europeia coerente. Nenhum país europeu, seja Alemanha, ou Reino Unido a França, a pode resolver os conflitos no Médio Oriente ou em África. Mas trabalhando em conjunto podemos fazer a diferença.

O Reino Unido decidiu não participar no programa de recolocação de refugiados. Cameron sempre disse que abrir as fronteiras instigaria mais pessoas a arriscar as vidas no mar. Agora outros países defendem o mesmo. A Alemanha estava errada?
O Governo alemão agiu com base em motivos que são muito generosos. Nós, no entanto, assumimos de forma consistente que devíamos concentrar-nos em lidar com estas questões na fonte. Não pertencemos ao espaço Schengen, mas empenhamo-nos em receber um grande número de refugiados directamente da Turquia e do Líbano. Estamos a mostrar que estamos disponíveis para fazer a nossa parte, organizamos uma conferência de doadores e prometemos mais mil milhões de libras em ajuda aos refugiados na Turquia e nos países vizinhos. E esse é um compromisso que levamos muito a sério.

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