Um jogo literário de Juan José Saer

Quatro narrativas ligadas apenas por um tempo histórico e político, num jogo entre o real e o absurdo.

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Cicatrizes: um jogo literário com o leitor, entre o absurdo e o caos

Publicado originalmente em 1969, Cicatrizes é considerado o primeiro romance da maturidade literária do argentino Juan José Saer (Santa Fé, 1937 - Paris, 2005). Chamarmos-lhe “romance” é apenas uma questão de facilidade de arrumação e, sobretudo, porque o autor assim o classificou. Na verdade trata-se de quatro histórias longas (novelas?) que poderiam ser lidas de maneira independente, sem ligação aparente entre elas, a não ser o surgimento fugaz de algumas personagens e as referências comuns a um crime passional (cujas descrições e motivos preenchem a última das histórias). A experimentação formal – quase sempre com um piscar de olho ao nouveau roman – caracteriza quase todas as obras de Saer. Os nexos formais entre estas quatro narrativas, reduzem-se ao entrecruzar das trajectórias de duas ou três personagens em espaços comuns na cidade argentina de Santa Fé num determinado tempo histórico. De uma forma quase subliminar, é este tempo (histórico e político) que as une: um tempo entre governos peronistas (os trabalhadores são o centro desta doutrina política); não é por acaso que o autor escolhe um 1º de Maio cinzento, de ruas vazias, sem comemorações, para o dia em que se dá o crime referido nas quatro “novelas”. Em Cicatrizes Juan José Saer evita assim, com argúcia, o simplismo ingénuo de uma abordagem política, e recusa um realismo a que se poderia chamar ‘populista’.

A primeira das histórias é uma espécie de retrato do artista adolescente. Ángel acabou de fazer dezoito anos, arranjou trabalho num jornal (onde escreve a coluna da meteorologia, que inventa ou copia de dias anteriores – mais uma vez referências a um tempo metafórico que não tem correspondência com a realidade), e é amigo de Tomatis, um jornalista que passa o tempo a jogar bilhar. Ángel vive com a mãe (ainda nova, bonita e atraente), entre os dois a relação é bastante conflituosa e destrutiva, pontilhada com desejos incestuosos não explicitados (“nunca suportei foi que andasse a passear-se seminua pela casa”). O rapaz vagueia de noite pelas ruas da cidade, e toda a sua vida se desenrola numa continua tentativa de resolução de umas quantas ambiguidades, da normalidade à loucura, da heterosexualidade à homossexualidade: “O fio era o seu olhar, e eu sentia-me encurralado no seu campo de visão, naqueles metros em volta iluminados pelos candeeiros cálidos do escritório, e quando me encaminhava para a mesa das bebidas ou para a janela parecia-me que a tensão do seu olhar atingiria a qualquer instante o seu ponto máximo, e eu ver-me-ia de súbito parado de costas para ele, embatendo contra um limite.” Há ainda nesta história um (suposto) encontro com o duplo de Ángel, que o tenta perseguir – como se Jorge Luis Borges não pudesse deixar de estar presente.

A segunda história é narrada por Sergio, um advogado peronista, que não exerce (e que assim não chegará a defender Luis Fiore, o autor do crime passional e a principal vítima do absurdo). Sergio é obcecado pelo jogo, e nele vai consumindo a fortuna herdada da família. “Por muito bem que uma pessoa jogue, sempre há mais alguém neste vasto mundo capaz de fazê-lo melhor. Portanto, o método mais seguro é a batota.” O absurdo da realidade mistura-se aos poucos com o caos da loucura, como se tudo fosse gerido por leis de um estranho jogo, deixando entrever réstias veladas da influência de Rayuela (o célebre livro de Julio Cortázar que fora publicado em 1963).

Juan José Saer não era autor inédito em Portugal, tem por cá traduzidos três livros: A Ocasião (1989), As Nuvens (2001), e A Investigação (2002), todos publicados pela Editorial Caminho. Na sua obra, apesar das influências de autores argentinos (Borges, Sábato e Cortázar), a que é mais evidente é sem dúvida Faulkner (e nisto ombreia com outro sul-americano, Juan Carlos Onetti). Como o autor do Mississípi, também o argentino Saer situa as suas narrativas num espaço mítico (apesar de real e urbano), Santa Fé, onde as suas personagens (as mesmas surgindo em vários livros) vão oferecendo aos leitores diferentes pontos de vista de uma mesma história, numa prosa trabalhada e lenta, que por vezes se arrasta em frases longas, com detalhadas descrições dos espaços da acção. É também assim em Cicatrizes, que longe de interessar se é ou não um romance, se afirma sobretudo como um jogo literário com o leitor, entre o absurdo e o caos.

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