Músicos encontram escritor

Medeiros/Lucas enviaram um mail a João Pedro Porto: "Músicos procuram escritor". Primeiro passo para Terra do Corpo. Música que deslumbra e que é seta apontada a este tempo de desejos não saciados que é o nosso

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Pedro Lucas, João Pedro Porto e Carlos Medeiros. Juntos criaram Terra do Corpo FOTOS: Nuno Carvalho

O normal nestas coisas é lermos um anúncio do tipo “banda procura baterista versátil para som funk à Red Hot Chili Peppers”. Ou “guitarrista procura secção rítmica para banda de fusão jazz/tradicional”. Põe-se um anúncio algures, o músico encontrará outros músicos, enfiam-se todos numa garagem e daí a uns tempos alguma coisa, qualquer coisa, nascerá do encontro. Ora, esta não é uma banda normal. Sabemo-lo desde que foi editado Mar Aberto, preciosa viagem de aventuras e desventuras, o homem como corpo que parte à aventura ou pela desventura, disco de tradição e modernidade – intemporal portanto. Foi o álbum que em 2015 juntou Pedro Lucas e Carlos Medeiros e não, não cabia na estreiteza da palavra "normal".

Ainda era Mar Aberto álbum fresco na memória, na voz do Carlos que canta e nas mãos do Pedro que compõe e toca guitarra, quando este colocou o seguinte anúncio na caixa de correio electrónico de João Pedro Porto: “Músicos procuram escritor”. Os músicos eram eles, Medeiros/Lucas, e o escritor era o autor de O Rochedo que Chorou [Publiçor, 2011], O 2egundo M1nuto [Letras Lavadas, 2012] e Porta Azul para Macau [Letras Lavadas, 2014]. Reunidos, fizeram o normal. João Pedro enviava uma estrofe a Lucas. Lucas pedia-lhe mais umas quantas e respondia-lhe com pedaços de música. João Pedro acrescentava, Lucas reorganizava, Carlos cantava versos que, entretanto, já estavam desactualizados porque o trabalho, frenético, ia sendo retocado até tudo cair exactamente no sítio.

Juntos criaram Terra do Corpo, álbum que conhecerá edição esta terça-feira, 5 de Abril, e que será apresentado a 27 de Abril na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, e a 30 de Abril no Passos Manuel, no Porto. Gravaram-no com o percussionista Ian Carlo Mendoza e o teclista e baixista Augusto Macedo, comparsas no anterior Mar Aberto, com companheiros de aventura como o contrabaixista Carlos Barretto, António Costa (dos Ermo), a cantora Selma Uamusse e os guitarristas Tó Trips e Filho da Mãe.

Terra do Corpo deixará a sua marca profunda, neste ano e nos anos por vir, em quem o quiser ouvir. Porque nele se pressente o desejo de aventura que os açorianos Medeiros e Lucas tão bem derramaram sobre Mar Aberto. Porque as palavras do também ilhéu João Pedro Porto, cantadas na voz “cansada e brilhante” de Carlos Medeiros, como adjectivará o escritor, são seta apontada a um tempo de angústia indefinida, saturada de desejos não saciados, que é o nosso. E porque a música tem âncora numa ideia tradicional – a canção como expressão íntima e generosidade comunal -, mas espraia-se, graciosa, sentida, pelo mundo que se descobre a sul.

Um estalar de dedos, um contrabaixo que ressoa no fim do compasso, as vassouras raspando tarola e timbalões. Toda uma outra Fever, como se tornará óbvio quando a electrónica irrompe, quando o arco do contrabaixo se agita, convulsivo: “Tudo tédio, tudo torpe / É tanto trago no vazio / A tanta sede nada cura / a fome de fio a pavio”, entoa a voz grave de Sede, a primeira canção. “Ei-lo capital na safra de gente / O homem feito banal / todo o demente isto entende / A ele não lhe virá mal” - e estamos na segunda canção, Safra de gente: “o homem feito adereço”; “o homem feito boçal”; “o homem quer-se vertical”.

Perguntamos a João Pedro Porto, que nunca ouvira uma nota da música de Medeiros/Lucas antes de lhe aterrar o tal mail na caixa de correio, o que o uniu a Pedro Lucas e Carlos Medeiros. “Eu acho que eles não fazem nada que seja inconsequente, e eu também não quero fazer nada que seja inconsequente. Ninguém ouve o Mar Aberto e fica indiferente. Eu tento o mesmo na escrita. Não sei se é o que passa, mas nada do que se escreve [em Mar Aberto] é vazio, oco, torpe”. Terra do Corpo é tudo menos normal. É um deslumbramento e um abanão. Necessário.

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O disco foi gravado com o percussionista Ian Carlo Mendoza e o teclista e baixista Augusto Macedo, comparsas no anterior Mar Aberto

Liberdade de pátio

Medeiros/Lucas actuaram no último festival Tremor, em Ponta Delgada. Tocaram no pequeno largo construído no interior da Oficina – Museu nas Capelas. Não estávamos lá, mas contou-nos quem esteve que, enquanto tocavam as canções de Mar Aberto, onde os elementos são matéria tão presente, a chuva começou a bater em janelas e clarabóia. Era água e chuva que cantavam e os pés dos músicos percutiram o chão, vozes e guitarra e os pés alimentados pelo cenário e alimentando o dramatismo do cenário. Dias depois, encontramo-los numa das mesas da vetusta Tabacaria Açoreana.

A entrevista estará quase no final quando Pedro Lucas refere um título do escritor Gonçalo M. Tavares. Aprender a Rezar na Era da Técnica. Acho que tem muito a ver com este disco. Essa expressão precisamente. Esta ‘revolução’ em que, para o bem e para o mal, o ideal iluminista vingou com o triunfo do racionalismo”. João Pedro Porto já resgatara para a conversa o escritor Mário de Carvalho. “Uma mente fechada é um corpo fechado. E vivemos realmente fechados. Estou a diagnosticar”, diz em à parte - “até utilizo a palavra diagnóstico muitas vezes [João Pedro Porto é psicólogo]” -, “mas vejo-nos em cerco”, continua. “Há uma noção de liberdade, mas é, como no [livro de] Mário de Carvalho, uma liberdade de pátio. É o que temos hoje em tudo. No conhecimento ou no desejo. Estamos fechados, cercados”. Terra do Corpo é, pelas palavras que nele ouvimos, pela forma como a música faz as palavras, uma “intervenção às consciências”, mas também uma erupção de luz onde as canções se tornam unas com a verdade essencial dita no balanço melancólico de Sístole perdida: “Vento vai e vento fica / tudo vai e tudo volta / vento vai e vento fica / tudo é ida e tudo é volta / nada fica que não se veja / não se veja de partida”.

À mesa da Tabacaria, inaugurada no longínquo ano de 1931, está Pedro Lucas, guitarrista nascido no Faial e que, emigrado em Copenhaga, sentiu o apelo das raízes e criou o Experimentar Na M’Incomoda, através dos quais, em dois álbuns, estabeleceu um diálogo proveitoso entre a música tradicional açoriana e a electrónica. Está também Carlos Medeiros, o cantor da Terceira que gravara em 1998 um álbum de recontextualização de recolhas de música açoriana, O Cantar Na M’Incomoda, que seria o rastilho criativo para o arranque do percurso musical de Pedro Lucas. E está o micaelense João Pedro Porto, chegado ao convívio dos outros dois porque Medeiros leu Porta Azul Para Macau e ofereceu um exemplar a Lucas. Este, que matutava na ideia de “continuar com as canções em português, mas usando poesia contemporânea”, mergulhou na “escrita por vezes barroca, muito rica e sugestiva, com muita textura” de João Pedro, e encontrou nele o destinatário para o mail que é o início de tudo: “Músicos procuram escritor”.

Entre os três pressente-se empatia de tertúlia e identificação criativa. Pedro Lucas e João Pedro Porto conversam mais que respondem. Carlos Medeiros guarda-se para curtas frases, pequenos apontamentos – Pedro e João falam longamente do processo de discussão do que seria e que abordaria Mar Aberto e Carlos resume tudo: “Disseste uma coisa, a idade banal. A banal idade”. João Pedro Porto: “Atirávamos uns aos outros ideias e referências culturais e o Carlos destruía tudo à granada – estou a brincar, porque a granada é uma ferramenta importante, é preciso deitar abaixo para construir”. Carlos Medeiros: “Uma granada para abrir uma janelinha não está mal”.

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Entre os três pressente-se empatia de tertúlia e identificação criativa. Pedro Lucas e João Pedro Porto conversam mais que respondem. Carlos Medeiros guarda-se para curtas frases, pequenos apontamentos FOTOS: Nuno Carvalho

Tudo o que é o álbum nasceu do título que o antecedeu. Terra do Corpo. “Tínhamos que nos afastar da filosofia do Mar Aberto, mas afastarmo-nos em continuidade. O que há depois do mar? O que se procura no mar? Procura-se a terra. Foi bastante óbvio”, explica João Pedro Porto. “Depois tentámos ser interventivos, de alguma maneira. E então falámos do vazio, que nos parece uma questão muito contemporânea. Cada canção surge em jeito de aviso. Estamos a pôr o dedo na ferida. Nas feridas todas, que também são nossas”. Atalha Pedro Lucas: “Não apontamos o dedo. Há aqui muita coisa de mea culpa. Cantamos estas canções como parte do colectivo”. É essa ideia de colectivo, de resto, que o encaminhou para aquilo que é musicalmente Terra do Corpo.

Falamos a Pedro Lucas de como este parece ser um álbum onde se pressente a intervalos regulares um sopro vindo do sul. Há em Corpo vazio, no belíssimo dueto entre Medeiros e Selma Uamusse, algo do lendário músico etíope Mulatu Astatke, vogando entre as memórias africanas de José Afonso. Existe essa Pulmão onde fervilha o som do Cairo contemporâneo, o dos sintezadores e ritmos alucinados do electro-chaabi. E identificamos na guitarra de Fome de vento, a canção de despedida, o ondular encantatório dos tuaregues Tinariwen. Tudo isso está lá, concede, e está como encontro feliz entre intuição e intenção.

“Muito resulta de uma escolha passional. Se não tivesse visto o concerto do [músico egípcio Islam Chipsy] na ZDB, o teclado de Pulmão não existia”. Ao mesmo tempo, aqueles sons reflectem uma procura consciente. “Nas canções tradicionais à fogueira toda a gente canta. Ouves os Tinariwen e outras bandas africanas semelhantes e também é assim. Depois de sair o ‘Mar Aberto’ vi uma banda de Madagáscar em Copenhaga e tive essa certeza. O próximo disco tem que ter esse elemento. Pessoas activas, a reclamar o seu espaço na produção daquela arte” - é outra forma de dizer que este álbum assinado Medeiros/Lucas somos também nós.

Começaram por Mar Aberto e chegam agora a Terra do Corpo. É o segundo álbum de uma trilogia. Sabê-lo acrescenta uma boa notícia à boa nova que é a sua chegada: a de que a história não acabou. Sorvemos este magnífico álbum sabendo que outro lhe sucederá. Que viagem, senhoras e senhores, que viagem está a ser esta.

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