Um dos primeiros testemunhos do terror nazi

Ditado por Rousset à mulher em 1945, o ano da sua libertação do Campo de Wöbbelin, O Universo Concentracionário é uma descrição objectiva, sem vagar para um olhar demasiado “introspectivo” ou “sentimental”.

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David Rousset começa por descrever, dum ponto de vista cimeiro, uma mescla de corpos e máquinas, terra e morte

Um dos primeiros testemunhos do terror nazi, O Universo Concentra-cionário, de David Rousset (1912-1997), conclui-se com um aviso. Escreve o autor francês (112): “A sociedade alemã, quer devido à sua estrutura económica quer à dureza da crise que a arruinou, conheceu uma decomposição ainda excepcional na actual conjuntura do mundo. Mas seria fácil mostrar que os traços mais característicos, não só da mentalidade S.S. como também dos alicerces sociais, se encontram em muitos outros sectores da sociedade mundial. (…). Seria um logro, e criminoso, pretender que é impossível aos outros povos fazerem experiência semelhante por terem uma natureza diferente”. Este é um homem em sobreaviso. Nada garante que o que aconteceu permaneça para uma excepção ou irrepetível. Nada. Ditado por Rousset à mulher em 1945, o ano da sua libertação do Campo de Wöbbelin (Norte da Alemanha), O Universo Concentracionário pretende ser uma descrição objectiva, sem vagar para um olhar demasiado “introspectivo” ou “sentimental”. Considera o tradutor João Tiago Proença, no seu notável prefácio, que há uma “ausência quase total do Eu” a par de um uso tímido dos pronomes pessoais. As frases obedecem a uma urgência angustiada, a um registo lacónico, a escrita busca as caracterizações psicológicas e físicas, a reconstituição minuciosa dos lugares e do funcionamento dos campos. Toda e qualquer cedência à “poesia” ou à “literatura” está ao serviço do relatório de uma existência brutalizada, reduzida à animalidade. Expressões como “a obstinação de uma corrente de ar” (página 18) ou os nomes dos capítulos (Há Várias Câmaras na Casa do Senhor ou Faço a Minha Cama nas Trevas), metáforas que se desvelam após a leitura, subordinam-se ao relato daquele que teve, nas palavras de João Tiago Proença, o terrível privilégio de ser um homem concentracionário.

David Rousset começa por descrever, dum ponto de vista cimeiro, uma mescla de corpos e máquinas, terra e morte. O olhar descerá, depois, sobre os cadáveres e os muros, as caixas de bombas e torpedos que se confundem com as imundícies, os ventres gelados que os gritos e as pancadas sacodem. Buchenwald, onde foi encerrado em 1943, é uma cidade isolada que “vive sob o signo de um enorme humor, de uma palhaçada trágica”. Chegados à cidade, os detidos saltam dos vagões, como “bonecos de corda partida”, “cegos de golpes”, “pegajosos de medo”. Arrastam-se pelos corredores kafkianos e seguem para os barracões onde, despidos de tudo, serão vacinados sob rajadas de vento. Já não estão no mundo dos homens, mas no mundo buchenwaldiano, um absurdo, virado do avesso. Nesta cidade, não viverão uns com os outros, lutarão uns contra os outros para não morrerem e para morrerem.

Até ao quarto capítulo, aquele em que o relato finalmente se foca nos seus objectos, Rousset faz esperar o leitor, coloca-o no mercado de escravos que todas as manhãs, antes da alvorada, se instala na Grande Praça. Pausa para introduzir o léxico de campo, anunciar uma imagem: “Esqueletos estranhos, de olhos vazios, caminham como cegos por cima do lixo que tresanda. Encostam-se a uma viga, de cabeça caída, e ficam imóveis, mudos, uma hora, duas horas. Pouco depois, o corpo prostrou-se. O cadáver vivo tornou-se um cadáver morto”.

O Capítulo IV começa com a frase soberana: “Não conheceis a profundidade dos campos”. David Rousset será, então, o nosso guia. Ele fala-nos dos homens (preso políticos, uns fieis às suas convicções, outros arrebanhados por ninharias, e presos de delito comum, criminosos, verdadeiros canalhas), do que foram capazes e do que não foram capazes. Homens obsequiosos, mesquinhos, violentos, escroques, alemães, polacos, russos, franceses. Mas também personagens shakespearianas, angustiadas, de olhar terno. Apesar das injúrias, da fome, dos músculos dilacerados, há quem chame pelos netos, quem fale de mulher, quem suspire animadamente. E há o rosto do holandês Paul “doente de tristeza” com o seu belo rosto “que merecia um refúgio contra o tumulto” (página 32).

Os campos que o autor conheceu (Buchenwald, Neuengamme, Porta Westfalica, Wöbbelin) não eram de extermínio, mas entre eles e Auschwitz a diferença era de grau, não de natureza. Em todos se enforcavam homens. A entrada no universo concentracionário já se fez. Aqui vigoram às leis da vida biológica, a competição encarniçada pela sobrevivência. As idades, as profissões, as posições sociais, as biografias desfazem-se lentamente. “O velho é um objecto de escárnio e de desprezo, por causa da sua fraqueza. A única coisa que conta é o poder” (página 46). Deste inferno, alimentado pelos presos criminosos que corrompem todas as solidariedades, Rousset arranca várias personagens: o velho belga, que morreu escondido num armário; o escritor e tradutor francês Benjamin Crémieux (numa das mais tocantes passagens do livro), de olhar vivo noutro universo, que mantinha os gestos, a naturalidade do homem que tinha sido; ou Franz, o Kapo austríaco, que na sua fúria cega e ambição adolescente, acabou traído pelo medo dos outros.

O medo, o medo que apagava o pensamento não era provocado apenas pela ameaça da morte. Era-o, fundamentalmente, pelas rotinas da tortura e as constantes mortificações. Aos SS, os deuses do campo, não bastava matar. Os comunistas, os russos, os polacos, os resistentes obstinados, votados ao fogo apocalíptico, “organicamente maus” antes de serem eliminados, deviam expiar o seu mal. Repetidamente, para que não se esquecessem. O trabalho não passava de um meio (para a morte) que se tornava, nas circunstâncias, útil. Nesta maquinação demente, os SS supervisionavam, vigiavam, assegurando, quais titereiros diabólicos, a permanência do crime, das intrigas, da corrupção. Contavam com colaboração forçada, ainda que preciosa, de uma espécie de aristocracia entre os concentracionários: os burocratas que aumentaram com a expansão dos campos e do trabalho. Rousset chama-os de “concentracionários com poder”, a maioria Kapos, que traficam com os civis, sob o desprezo dos SS, também eles traficantes ávidos. Porque, com os horrores, os campos geravam possibilidades de negócios, à custa da mão-de-obra violentada que os detidos forneciam. “Os Senhores S.S. têm desejos. Os detidos são excrementos. Mas até mesmo com a merda se consegue fazer dinheiro. E grandes somas” (página 89).

No interior das estruturas burocráticas (que respondem perante burocracia das SS), a tortura triunfa, sempre viva e activa, sobre o pensamento, desumanizando os homens. O relato da degradação em Até o desejo se corrompeu (págs. 93-94) é terrível, indescritível e necessário, pois “os homens normais não sabem que tudo é possível.” Mas seria indigno de O Universo Concentracionário (fonte incontornável de As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt), concluir este texto sem lembrar a insistência dos detidos políticos em falar e conversar, apesar das ameaças, e as palavras que Rousset dedica aos que permaneceram firmes. Erich, Emil, Kurt, que nunca baterem em ninguém, Walter, que continuou sensível, Ernst, simpático, que manteve uma vida sã, normal. Todos mantiveram incólume a sua dignidade naquele inferno. Exclama o emocionado Rousset: “Emil, Walter, que lição singular a vossa vida e que ensinamento de poder verdadeiro através de todas derrotas”. Homenagens aos que resistiram, mortos (Marcel Hic, Veillard ou Crémieux) ou vivos (Robert Antelme, Martin ou Guy). Também com eles, por causa deles, foi escrito este livro. Nota final para a capa da autoria de Rui Silva: bonita e discreta, entranha-se e depois estranha-se. Sem cessar.

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