Portugal misturado

Aqui, a música tradicional é matéria criativa passível de mil moldagens, criando um efeito que pode tanto pode ser hipnótico como arrebatador, alucinado, divertido, melancólico, assustador ou diabolicamente lúdico. Vivíssimos, estes Sampladélicos.

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Não nos Deixeis Cair em Tradição é um bomba de deflagração que estilhaça lógicas territoriais e temporais

“Só quero que me contes a história de como é que era”. Tiago Pereira só quer saber isso. Mas não é só isso, contar a história de como era, que faz quando se junta a Sílvio Rosado nos Sampladélicos. Na verdade, não é nada disso que fazem o videasta, co-fundador d’A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, portal que reúne centenas de recolhas musicais feitas por todo o país, e o músico cujo currículo se cruza com bandas como Flood, Primitive Reason ou Nicorette.

Não nos Deixeis Cair em Tradição, o álbum da dupla, é uma obra de recontextualização, uma bomba de deflagração que estilhaça lógicas territoriais e temporais, que funde territórios num novo e único espaço — inventado no preciso momento em que, usando como matéria única os sons dos instrumentos, vozes e ambientes recolhidos no portal desde 2011, Tiago Pereira e Sílvio Rosado cortam e colam, recortam e voltam a colar.

Entre a arte gráfica criada para a edição por Pedro Lourenço descobrimos um pobre Galo de Barcelos, boneco de louça partido em vários pedaços. O trabalho dos Sampladélicos não é estilhaçar a tradição. O que os Sampladélicos fazem em Não nos deixeis cair em tradição (grande título, já agora) é voltar a colar as peças do bicho escaqueirado. Bicho tradicional continuará a ser, mas iremos vê-lo, e ele a si mesmo, sob uma luz diferente. As 16 faixas que compõem o disco são um festim: trad-moderno, electro-ancestral, global bem localizado.

Bombos e adufes trabalhados até se transformarem em techno orgânico, violas campaniças e braguesas ondulando em bordão que os Animal Collective gostariam de ter inventado, vozes vindas das profundezas do tempo, quais fantasmagorias sobrevoando música ambiental inventada com o som manipulado de acordeões. Toda uma diversidade de sotaques (de norte a sul do país) e tradições em feliz colisão e sem outro guia que não o prazer da descoberta. Ouve-se o território: os badalos do rebanho, o amolador, o vento e a flauta do pastor. Ouvem-se polifonias vocais ou trava-línguas algarvios trabalhados com ritmo.

Aqui, a música tradicional como matéria criativa passível de mil moldagens, criando um efeito que pode tanto pode ser hipnótico como arrebatador, alucinado, divertido, melancólico, assustador ou diabolicamente lúdico. Não há programa a seguir, não há manifesto a cumprir: apenas o prazer da invenção e o carinho pela obra registada, transformada em homenagem à sua vitalidade. Uma viagem surpreendente. Vivíssimos, estes Sampladélicos.

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