Nem sempre Faulkner é "difícil"

Segundo volume da trilogia iniciada com A Aldeia. Um romance sulista sobre a ganância e o poder, um dos grandes romances de Faulkner.

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A Cidade é um exemplo evidente de que nem sempre Faulkner é um autor “difícil”

A Cidade, o segundo volume (até agora por cá inédito) da “trilogia dos Snopes” — o primeiro volume é A Aldeia (Livros do Brasil, 2015) continua a saga da ambição desmesurada por prestígio e dinheiro de um homem rude e implacável, e nele damos também conta da história de amor da sua mulher, a bela e fatal Eula Varner. O homem, com fama de incendiário e de ladrão de cavalos, é Flem Snopes (“um par de olhos frios, entre sobrancelhas felpudas de laivos grisalhos e uma barba da mesma cor, muito hirsuta, como a pele de uma cabra”), que há alguns anos chegou a Frenchman’s Bend, nos arredores da cidade de Jefferson, a capital do lendário condado de Yoknapatawpha, Mississipi, e se apresentou ao filho de um dos grandes proprietários da região: “O meu nome é Snopes. Ouvi dizer que tem uma quinta para alugar.” Pouco tempo depois desposava-lhe a filha; e a sua ascensão começava.

Em A Cidade, Flem Snopes vive já em Jefferson, e a sua temerária fama e poder quase despótico continuam a crescer. William Faulkner (1897-1962), prémio Nobel de Literatura em 1949, dá-nos mais uma vez, com ironia e humor cáustico, a sua peculiar visão sobre a febre da ganância (bastas vezes destruidora) que continuou no sul dos Estados Unidos mesmo após a II Guerra Mundial (e que se iniciara no período pós Guerra Civil — não faltam no romance referências ao século XIX, aos ianques e ao mítico coronel Sartorius). A “trilogia dos Snopes” foi iniciada em 1940, mas só em 1957 Faulkner publicou o segundo volume, e dois anos depois o terceiro, A Mansão.

A “dificuldade” em ler Faulkner, de que alguns leitores se queixam, vem por associação imediata a romances densos, com a história articulada de forma complexa, com genealogias familiares que “ligam” uns livros a outros, com uma prosa torrencial e por vezes inacessível. Pode ser que de um ponto de vista menos literato, simplista e tomando partes pelo todo, tenham alguma razão. Mas muitas vezes essa “dificuldade” vem do facto de o terem começado a ler por algum dos seus livros mais “difíceis”, como por exemplo Absalão, Absalão. Este A Cidade é um exemplo evidente de que nem sempre é assim, um autor “difícil”, apesar de nele se encontrar inteiro aquilo a que se chama o “modo faulkneriano” de narrar (que está muito mais vincado no primeiro volume da trilogia): o habitual recurso ao “fluxo de consciência, a cadência, a atenção escrupulosa aos detalhes, a apresentação inteligente dos múltiplos pontos de vista dados por diferentes vozes narrativas (algumas vezes de iletrados, de crianças, de descendentes de escravos, de agricultores incultos, ou de diminuídos mentais), algum estilo frásico barroco, frases longas com partes subordinadas, personagens contraditórias e preconceituosas no modo de se expressarem, um bem arquitectado dispositivo psicológico que abre caminho para o inconsciente, da técnica narrativa que inclui várias cenas ao mesmo tempo, sintaxe e pontuação corrompidas (como neste exemplo: “uma certa tarde o Tom Tom estava a fumar o seu cachimbo em cima do monte de carvão quando o Senhor Snopes chegou trazendo na mão aquilo que o Tom Tom a princípio pensou ser uma ferradura número três para muares até o Senhor Snopes levar a dita coisa para um canto atrás das caldeiras onde se tinha acumulado um monte de desperdícios e coisas velhas”).

À semelhança de muitos dos romances de Faulkner, também esta trilogia tem como cenário o condado de Yoknapatawpha, no Mississípi, esse espaço geográfico mítico, em que as famílias têm múltiplas ligações entre si durante gerações. O condado de Yoknapatawpha (inspirado na cidade onde vivia o autor, Oxford, Mississipi) é uma parábola do olhar de Faulkner sobre tudo aquilo que caracteriza e singulariza o Mississipi, e de um modo mais geral, o Deep South. É um olhar muito mais abrangente, e ao mesmo tempo mais profundo, do que o de outros escritores sulistas, como Mark Twain, Eudora Welty, Flannery O’Connor ou Tennessee William.

A Cidade é narrado por três vozes, todas elas muito pouco fiáveis. Os acontecimentos na cidade de Jefferson (sobretudo as perigosas tramas arquitectadas por Flem Snopes e familiares, e os amores proibidos da mulher) surgem ao leitor sob uma luz aparentemente nítida mas que aos poucos se vai toldando deixando o leitor permanentemente na dúvida.

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