Morte por ruptura de aneurisma: oito anos depois, dois médicos vão ser julgados na Madeira

Uma psicóloga de 27 anos não resistiu a uma ruptura de aneurisma cerebral quando vivia na Madeira, em Abril de 2008. Morreu quando era transferida para o Porto.

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Actualmente, os casos de ruptura de aneurisma na Madeira já são tratados no Funchal Rui Gaudêncio

Quase oito anos depois da morte de uma psicóloga de 27 anos que sofreu uma ruptura de aneurisma cerebral na Madeira -  problema semelhante ao que vitimou David Duarte no hospital de São José (Lisboa) em Dezembro passado -,  vai chegar a julgamento um caso que se tem arrastado pelos tribunais e pela Ordem dos Médicos (OM). Na Madeira, este grave problema de saúde passou a ser tratado localmente entretanto, mas nos Açores os doentes continuam a ter de ser transferidos de avião para o continente para serem intervencionados.

Nádia Oliveira morreu depois de ter aterrado no aeroporto do Porto vinda do Hospital Central do Funchal, poucos dias após o nascimento da sua primeira filha. Foi em 24 de Abril de 2008. Não chegou a tempo de ser operada no Hospital de São João (Porto), onde uma equipa especializada se preparava para a complexa intervenção que poderia (ou não) ter salvo a sua vida. A transferência foi feita num avião-ambulância fretado pela família.

Na altura, na Madeira, os doentes com ruptura de aneurisma cerebral eram estabilizados e ficavam a aguardar durante dias ou mesmo semanas até serem transferidos num “avião de carreira” para o continente, onde eram então tratados, segundo confirmaram os médicos ouvidos no âmbito do processo-crime interposto pela família.

É uma história intrincada: o marido de Nádia, Rui Oliveira, está empenhado em conseguir que todos aqueles que considera terem contribuído para este desfecho sejam julgados. A tese de Rui é a de que Nádia andou a “passear” um aneurisma roto em “múltiplas intervenções médicas do Hospital Central do Funchal”, num período de quase um mês, sem que os especialistas que a observaram conseguissem diagnosticar o problema. Mais: quando finalmente o diagnosticaram, “não tinham meios humanos nem técnicos para a tratar” localmente, lamenta Rui, que é engenheiro e entretanto decidiu emigrar, por estar “revoltado” com a falta de resposta e a lentidão dos sistemas de saúde e judicial em Portugal.

Na Madeira, a situação mudou, entretanto, e desde há anos que há equipas de neurocirurgiões vasculares e de neurorradiologistas de intervenção preparados para tratar aneurismas cerebrais rotos (quando um aneurisma, uma zona dilatada na parede de uma artéria cerebral, rompe, causa uma hemorragia que liberta sangue para o interior do compartimento que circunda o cérebro) . São equipas multidisciplinares com neurorradiologistas, que chegam ao cérebro através de um cateter, ou neurocirurgiões vasculares, com uma cirurgia, que podem consertar o problema.

A responsável pelo gabinete de imprensa do Serviço Regional de Saúde garantiu ao PÚBLICO que “a Madeira tem neurocirurgia na área vascular desde há cerca de 15 anos”. Mas em 2008 estava preparada para tratar rupturas de aneurismas cerebrais? Em casos mais complexos poderia haver necessidade de transferir os doentes, admite. Quanto ao caso de Nádia, não há comentários, porque este está “em segredo de justiça”.

Nos Açores, a resposta é clara: os doentes com ruptura de aneurisma cerebral continuam a ter que ser transferidos de avião para o continente. São casos raros mas acontecem, explica a assessora de imprensa do Serviço Regional de Saúde, que diz não haver notícia de transportes para o continente mal sucedidos, até à data.

“Transferência de culpas”?
Tudo começou em 27 de Março de 2008, quando Nádia se encontrava no final da gravidez da primeira filha e teve aquilo que Rui define como “a pior dor de cabeça da sua vida”. Ele acredita que foi justamente aqui que se iniciaram “os primeiros erros de diagnóstico”. Foi nessa altura que começou a uma via sacra de consultas médicas e de internamentos hospitalares. Pelo meio, a psicóloga teve a filha. Neste intervalo de tempo, foi observada por três ginecologistas/obstetras, um médico enviado pela empresa de seguros de saúde Multicare, dois ortopedistas, dois neurologistas e dois neurocirurgiões.

Mas “só” em 18 de Abril é que um médico suspeitou que o diagnóstico mais provável era uma hemorragia subaracnoideia (derramamento de sangue que acontece de repente no espaço compreendido entre o cérebro e a camada que o rodeia) após ruptura de um aneurisma cerebral. Rui não compreende também por que razão foram necessários “três dias” para que ela fosse submetida uma angiografia, o exame que permitiu diagnosticar  o aneurisma roto. Nessa altura, Rui diz que foi finalmente “informado de que o caso era muito grave e que deveria ser intervencionada de imediato mas no Hospital Central da Madeira não tinham condições para operar por falta de médicos formados e material”, tendo por isso que “ser enviada para o continente”.

A família – uma irmã de Nádia é médica – decidiu então pedir a opinião de Rui Vaz,  que trabalha no Hospital de São João e professor de neurocirurgia, que aceitou operar Nádia no Porto. A tese dos médicos que então observaram a psicológa é a de que a família é que teve a culpa, por ter decidido transferi-la num avião fretado, contra os seus conselhos, uma vez que o risco de uma nova hemorragia era muito elevado. Argumentam ainda que usavam então um protocolo que “só teve sucessos” e que passava por “estabilizar e tratar os doentes em repouso, durante um período de oito a 10 dias para evitar vaso-espasmo e só depois transferi-los para o continente, num avião de carreira”. Dizem que, nos “cerca de 20 anos de transporte deste tipo de doentes, foram transportados" para Lisboa e para o Porto  “328 “pacientes, “não tendo felizmente nenhum dos doentes falecido durante o transporte ou nas 72 horas que o medeiam”.

Há um médico que alega que a família avançou com esta acção por ter entrado num “processo psicológico de transferência de culpas” e “ exorcizador de consciências”. Há outro que afiança que a causa da morte foi “a transferência de altíssimo risco para o Porto, num avião com equipamento médico mal preparado”. Um terceiro advoga que o Ministério Público apenas seguiu o “guião do filme” fornecido pelo marido.

Quase oito anos após a morte, a batalha de Rui salda-se, para já, num processo-crime com dois médicos pronunciados e que aguarda a marcação de julgamento, além de uma acção cível que continua em recurso nos tribunais administrativos, depois de os médicos terem sido absolvidos.

Há ainda um outro processo, a correr na Ordem dos Médicos, que foi inicialmente arquivado e posteriormente reaberto depois de Rui  ter contestado a primeira decisão que absolvia também os profissionais de saúde. A Ordem dos Médicos confirmou ao PÚBLICO  que o  Conselho Nacional de Disciplina (CND) decidiu, em 25 de Junho de 2015, “fazer baixar novamente o processo ao CDRS [Conselho Disciplinar Regional do Sul] para realização de diligências instrutórias adicionais”.

No âmbito do processo-crime vão então sentar-se então no banco dos réus dois dos dez médicos que observaram Nádia no período compreendido  entre 27 de Março e 22 de Abril de 2008 e que vão responder pelo crime de violação da leges artis. Um deles consultou Nádia em casa, a título particular, e diagnosticou-lhe uma “mialgia de esforço”. No final, receitou-lhe vários medicamentos que ela acabou por não tomar a conselho do farmacêutico, uma vez que estava a amamentar. O outro é o ortopedista que a observou no serviço de urgência do hospital do Funchal, também a título particular, porque ela se queixava de “cervicalgia”. O ortopedista fez-lhe um raio X, deu-lhe um analgésico e prescreveu-lhe um colar cervical.

Considera o juiz de instrução no seu despacho final que eles deveriam ter encaminhado a doente para “as áreas de neurocirurgia  e neurologia”, o que, não tendo sido feito, retardou o diagnóstico do aneurisma. Este atraso contribuiu para a falta de tratamento e consequente agravamento do seu estado de saúde, conclui.

Foi o que restou de uma acusação inicial do Ministério Público que tinha começado por atribuir a cinco dos médicos que a observaram uma quota parte da responsabilidade pelo desfecho fatal, imputando-lhes além da violação da leges artis, o crime de homicídio por negligência. Mas os médicos contestaram a acusação, pediram a abertura da instrução e apenas dois foram pronunciados. O juiz de instrução levou em conta a alegação dos médicos que garantiram ter tido sempre sucesso nos casos de estabilização e  transporte para o continente.

Além do processo-crime foi também desencadeado um processo administrativo contra o Serviço Regional de Saúde e seis médicos. Este processo,  já julgado no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal e que resultou na absolvição dos médicos, está agora em fase de  recurso no Tribunal Central Administrativo do Sul (Lisboa).

Rui lamenta que os tribunais e a OM não aceitem pareceres de peritos internacionais, que seriam “muito mais independentes ,e acrescenta que a única coisa que compensa toda esta batalha e o esforço financeiro que está a fazer é saber que, “meses depois” de Nádia ter morrido, os especialistas “formaram-se, compraram alguns equipamentos” que faltavam e começaram a tratar localmente as rupturas de aneurisma: “Para mim isto acaba por ser o mais importante”.

Tratamento evoluiu muito nos últimos anos
O tratamento das rupturas de aneurisma cerebral tem evoluído muito ao longo dos últimos anos. “Inicialmente a atitude era mais conservadora, os doentes ficavam duas semanas a aguardar e os que sobreviviam eram operados depois disso”, recorda o presidente do colégio da especialidade de neurocirurgia da Ordem dos Médicos, Rui Vaz, que em Abril 2008 foi contactado pela família de Nádia e aceitou tratá-la no Hospital de São João (Porto), onde trabalha e é professor da Faculdade de Medicina.

 “A família fez o possível para a salvar”, defende o médico, para quem “o problema da justiça é o de estar hoje a discutir .um caso que aconteceu há tantos anos”. Em Abril de 2008, recorda, não havia tratamento para rupturas de aneurisma cerebral na Madeira, situação que foi corrigida entretanto. “A resposta evoluiu muitíssimo, é bom que assim seja”, louva o médico que pede que não se crie alarme  em relação ao tratamento desta patologia até porque actualmente em Portugal o tratamento é “de nível europeu”. 

O que acontece é que as guidelines internacionais foram mudando porque se verificou que a cirurgia retardada dos aneurismas conduzia a um grande número de mortes por ruptura, explica. Hoje, a mortalidade neste tipo de casos, “em números redondos”, já é menor, mas continua muito elevada: cerca de um terço dos doentes morre, um terço fica com sequelas e um terço sobrevive sem mazelas, sintetiza.

Sobre a situação das pessoas que vivem nos Açores, Rui Vaz lembra que “que morar numa ilha tem os custos da insularidade” e que, nestes casos, só há duas hipóteses: “Ou se desloca uma equipa com especialistas para tratar o problema localmente ou é preciso transferir os doentes. É a solução possível”.

O transporte destes doentes comporta  sempre riscos, admite, mas, com o passar dos anos, “percebeu-se que adiar o tratamento até às duas semanas não era a estratégia adequada , até porque o risco de hemorragia vai aumentando à medida que os dias  passam”. As guidelines internacionais aconselham agora “que o tratamento seja tão precoce quanto possível e nunca após as 72 horas”.

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