Estava a ser tão bom, Rihanna

Rihanna boicota-se e mancha um potencial grande disco.

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Carlo Allegri/REUTERS

A história já se repetiu vezes suficientes para que o suposto erro inocente soe apenas a manobra descarada. Na quarta-feira à noite, um –ups – descuido da plataforma de streaming Tidal, detida por Jay-Z e de que Rihanna é sócia, levou a que o oitavo álbum da cantora nascida nos Barbados fosse brevemente disponibilizado para audição e download na página de entrada. Anti deveria ter sido servido numa bandeja de exclusividade durante uma semana apenas aos subscritores do Tidal e aos detentores de telemóveis Samsung, numa data ainda a divulgar, mas certamente muito em breve – em Abril Rihanna já estará na estrada a promover o disco.

A “contenção de estragos” foi curiosa: na sua conta de Twitter, a cantora cedeu um código para download gratuito da totalidade de Anti no Tidal, operação que obriga ao preenchimento de um formulário e, nalguns casos (o do simples streaming), à abertura de uma conta que oferece um período gratuito de dois meses, após o qual se poderá optar por um de dois modelos de mensalidades pagas. Após uma campanha gerida ao milímetro na antecipação de Anti, tudo “estragado” por um erro que – mais tarde se farão as contas – poderá trazer uma considerável facturação e um número acrescido de novos subscritores (aos quais é prometido um sem-fim de futuros exclusivos de Rihanna) a uma cada vez mais animada guerra entre serviços de streaming.

Na verdade, Anti bem precisa de um lançamento espalhafatoso, porque o álbum que Rihanna vem adiando há muito documenta uma mudança de pele que lhe custará fatalmente uma posição menos confortável no campeonato mainstream. Não é por acaso, aliás, que coloca no alinhamento uma versão de New Person, Same Old Mistakes, tema de encerramento do último registo dos Tame Impala, aqui rebaptizado como Same Ol’ Mistakes. A opção parece justificada tanto pelo tom aéreo e desafiador, comum a grande parte de Anti e que rompe com o tradicional formato canção-r&b, quanto pelo óbvio apelo de lhe oferecer como refrão as palavras "feel like a brand new person".

Até aos segundos finais desse pedido de empréstimo aos psicadélicos australianos (eles próprios a operar uma revolução sonora em Currents), Rihanna está a atirar-nos à cara o seu melhor álbum desde Loud (2010). Até esse momento, há uma higiénica lavagem da dance-pop espaventosa e nauseante que se infiltrara em (Talk that Talk e Unapologetic), seduz-nos com um novo perfil melódico evidente desde o arranque com “Consideration”; uma fuga repetida às fórmulas gastas de um r&b físico e lascivo que se tornara terreno pantanoso nos últimos álbuns; e uma exímia exploração de ambientes instrumentais.

Se em Consideration (com produção de SZA) Rihanna começa por soar a Amy Winehouse e descobre uma faceta cândida pop adormecida, em James Joint deslumbra com a sugestão jazz-soul-hip-hop de que andou a escutar com atenção as mui recomendáveis THEESatisfaction, enquanto em Woo, o soberbo testemunho de metamorfose de Anti, deixa que a sua voz surja soterrada debaixo de uma obsessiva e claustrofóbica tapeçaria quase industrial comandada por The Dream e The Weeknd. Até a investida na sacramental balada, Yeah, I Said It, a leva para o belíssimo espaço de uma voz soprada a planar sobre sons quase diáfanos. Quando chega a Same Ol’ Mistakes, o rasto que deixa atrás de si – Work e Desperado, menos surpreendentes, portam-se muito bem e até a guitarra do ex-Extreme Nuno Bettencourt a atira para uma falsa canção de estádio de Prince nos anos 80 – não contém um único passo em falso e deixa-nos a salivar pelo quarto final do disco.

E é então que se esbarra num incompreensível curto-circuito e dá vontade de chamar nomes a alguém. A partir da décima canção, Never Ending, Anti é outro disco. Um disco em que Rihanna repentinamente se convence que é capaz de não ser má ideia apostar que, durante quatro temas, pode tentar ser Adele. Começando pela inane Never Ending – se era um tema acústico que queria, porque não repescar FourFiveSeconds, single com Kanye West e Paul McCartney, lançado no ano passado, e que não sendo brilhante ao menos a salvava da vulgaridade?

O pior é que não melhora. E Love on the Brain, que ainda consegue vir à tona mascarada de canção das Ronettes, Higher e Close to You continuam nesse caminho que, depois de temas como Woo, James Joint ou Yeah, I Said It, parecem resumir-se numa palavra: traição. Anti, o título, parece avisar-nos, afinal, de que este álbum joga contra si mesmo. E que Rihanna é a maior inimiga de si própria.

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